Série ficcional H. Miller – I: Um instante Henry Miller

28 fev

Por Lia Mirror

‘um instante de dois, sem mais nem para depois’. (1) ‘para excitar ou… acalmar paixões humanas’) (2)

Acordei com boca cheia de gozo. Olhei por todos os lados e aturdida, nada vi; nem mesmo o sexo ausente que me fez acordar, só o gosto se fazia presente. Era um sonho em uma realidade disforme.

Não encontrei maneira de dizer para ninguém o que aconteceu, nem mesmo para o espelho. O gosto me acompanhou o dia inteiro. Corri quilômetros para tentar abstrair algum sentido para esse delírio. Corri mais do que podia, mais do que queria. Senti uma angústia que perpetrou meu ser totalmente indefeso. Chorei de medo. Porém, foi justamente ai que fui ao encontro de H.M!

Estava de cueca como um menino, um homem. Mas eu era uma mulher! Chorei como um bebê. Uma alma perdida qualquer.

– Fuja! Corra! Transgressão? Infortúnio? Agressão? Utopia? ‘Fire!’ E a voz continuou:

“Fazer o caos que… cerca uma ordem que seja sua própria; semear discórdias e fermento para que pela descarga emocional a eles que estão mortos possam ser trazidos de volta à vista, então é que corro com alegria para os grandes e imperfeitos, em sua confusão alimento-me.”… Mas pretendo matar: “ tudo ao meu alcance a fim de acalmar o monstro que ‘me’ rói as entranhas…” (3)

BLAKE, William (Londres, Reino Unido, 1757- Londres, Reino Unido, 1827). O Ancião dos Dias, 1794. Água forte c/ aquarela. 23,3 x 16,8 cm. Museu Britânico, Londres. (**)

Nunca serei Miller nos parágrafos longos. Nunca serei Miller ou sempre serei Miller pelos desejos. Nunca serei Miller pelos descasos. Sempre serei Miller pelos entornos. Nunca serei Miller pelos desfortúnios da mulher. Sempre serei Miller pelos desejos da mulher.

Temporalidade adversa, truncada, cortada, despedaçada, incongruente. Miller te suga al penne, al gusto, al pesto. Vinho, cerveja, tequila, Balzac, Blake. Serei Miller quiçá pelo mesmo medo de não ter o que comer! Suportamos tudo, menos isso. Precisamos comer, alimentar-nos, saciar-nos!


(1) CIBELE. Um instante de dois. In: CIBELLE, the shire of dried Electrc… CD. 2007.

(2) Miller, H. Trópico de Capricórnio, Trad.  Aydano Arruda. Rio de Janeiro: IBRASA: São Paulo: s/d. , p. epígrafe.

(3) Miller, H. Trópico de Câncer. Trad. Aydano Arruda. Rio de Janeiro: O Globo: São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.p. 229.

(*)”Sobre Henry Valentine Miller: escritor norte americano (1891-1980); sua escrita era autobiográfica; escreveu sobre literatura e arte, porém sua obra foi marcada como obcena por quase todos os países que passou, sendo que no Brasil da década de 1970, Trópico de Cancêr chegou a ser proibido. O crítico Otto Maria Carpeaux foi o responsável pela distribuição e o reconhecimento literário de Miller no Brasil. Principais obras: Crazy Cock (1934); Trópico de Câncer (1934); Opus Pistorum (1936); Primavera negra (1936); Trópico de Capricórnio (1939); Dias de paz em Clichy (1939); O Mundo do Sexo (1940); O Colosso de Marússia (1941); Sabedoria do Coração (1941); Pesadelo Refrigerado (1945); O Sorriso ao pé da escada (1948); Sexus (Crucificação Encarnada vol. 1 , 1949); Os Livros da Minha Vida (1952); Plexus (Crucificação Encarnada vol. 2, 1953); Big-Sur e as laranjas de Hieronymus Bosch (1957); Nexus (Crucificação Encarnada vol. 3, 1960); A Hora dos Assassinos (Um Estudo sobre Rimbaud).”

(**) Sobre William Blake (1757-1827), poeta, gravurista, místico: e só meia dúzia de seus contemporâneos acreditavam em sua arte e o salvaram de morrer de fome. V. Tb. Gombrich, 1972: 386.

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