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O TECER dos 13 anos do Blog TECITURAS (2010-2023)

30 out

por Gisele Miranda, Lia Mirror & Laila Lizmann

O Blog Tecituras nasceu nas paredes de um quarto – gestado e parido. As palavras foram esculpidas, ora na pena, ora com as unhas. O caos, a dor e a “solidão do porvir de poucos” atentou que a “consciência sobrevive a qualquer circunstância”. As incisivas palavras são do artista Gontran Guanaes Netto (1933-2017), amigo, professor e tutor.

Gontran Netto nos deu a honra de sua colaboração no Tecituras com suas obras e suas reflexões, seus escritos e interferências.

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A homenagem dos 13 anos do Tecituras vem de um conteúdo Histórico, Artístico, Crítico e Político. De conteúdo imaterial, inquietações do pensamento à escrita com o objetivo de compartilhar conhecimentos, experienciar e zelar pelos bens culturais, com colaboradores – com ou sem vínculos acadêmicos e com uma bagagem de textos não perecíveis ao tempo, atualizados, conscienciosos de sua necessidade, por isso, nossa justa homenagem a Gontran Guanaes Netto. Há inúmeros textos sobre sua arte, sua luta, além de tutelar um pequeno espaço tecido ao longo desses anos com pesquisas sobre as obras de Antonio Peticov, Emmanuel Nery, Paschoal Carlos Magno, entre outros temas.

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O conteúdo artístico faz uma grande diferença. O conteúdo crítico é uma filtro necessário frente a educação da exclusão. Dessa homenagem tecemos reverência ao ofício dos professores em situações de risco e pobreza.

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Nosso Brasil tão diverso, nascido de um histórico de pura violência, dos séculos de escravidão, da exclusão, dos preconceitos. Esses séculos não foram sanados, tão pouco, os 21 anos de violência da ditadura civil e militar no Brasil, porque não há consciência histórica.
As ditaduras devastaram toda a América Latina, torturaram, violentaram, reprimiram, subornaram, difamaram e mataram. Toda essa herança resiste cada vez mais, estratificada nos professores, na moral da violência e da submissão material, na baixa remuneração, na ausência dos livros, das leituras, do tempo, das escritas à “missão impossível”.
Entre a teoria, o discurso frio e confortável há o extremo da prática nada confortável. Entre as fases antagônicas existem mais falas sujas, oportunas e arrogantes. Sem dúvida, a figura opressora tem cúmplices entre os próprios oprimidos. (1)

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Entre os traumatizados há sobreviventes, independente da indexação, do conforto, da assepsia, da insensibilidade, do apodrecimento, dos muros onde os discursos, principalmente econômicos falam mais alto, não por acidente, mas por natureza.

(1)  BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo Vol 2: A Experiência Vivida, Difusão Européia do Livro, 1967. “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.

(2)  DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 221. 

Série Ficcional H. Miller XXIX: A cama divã

30 out

por Lia Mirror, Laila Lizmann & Lara Kleine Augen

 

 

(…) As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
(Álvaro de Campos)

 

Após a morte de nosso amigo ancião Blake, os livros foram dispersos, as histórias perderam os fios de Ariadne e os monstros que mastigavam as entranhas dos que liam deixaram de existir. O salto para o abismo se deu entre a realidade e a ficção. (*) Assim, o bicho raivoso da vaidade desumanizou e fez das suas noites outras bocas, outros corpos.

A reação humana rasgou o tempo, cortou as letras, os segredos, as palavras, o gosto e as fotos. Não bastasse devorou o próprio coração, assim como Rimbaud, lentamente. Reconstruirá um Frankenstein somente amado por seu criador ou uma Alma Mahler inflável e amada por Kokoschka?

Alma Margaretha Maria Schindler ou Alma Mahler-Werfel (1879-1964) de Oscar Kokoschka (1886-1980). A boneca Alma Mahler. Projeto/desenho de Kokoschka para a feitura em tamanho natural s/d.

Da pedra bruta brotou uma flor rara. Da brutal fragilidade nasceu um vento forte para as ondas de um mar tempestuoso.

“Agora

não navega

nem tampouco vive

erra

se

escrito”

( C. Vogt, Marinheiro Pessoa**)


Louise Bourgeois (1911–2010) Cama azul, 1998 gravura 49,5 x 67,3 cm.

Nota:

(*) Foucault: “A ficção consiste não em fazer ver o invisível, mas em fazer ver até que ponto é invisível a invisibilidade do visível.” (Foucault, 1990)

 (**) Carlos Vogt. O Itinerário do Carteiro Cartógrafo – Cantografia. São Paulo: Massao Ohno, 1982.

 

 

Série Movimentos de Vanguarda IV – DADÁ/DADAÍSMO, parte I

30 out

por Gisele Miranda & Lia Mirror

Dadá prevê seu fim e se ri disto. A morte é um assunto perfeitamente dadaísta à medida em que ela não significa nem o mais insignificante. Dadá tem o direito de se suprimir e fará uso disto quando for chegada a hora.  (Huelsenbeck. In: Baitelo Junior, p. 28)

DADÁ É O CAOS, POIS A GUERRA É O CAOS. O Dadá surgiu durante a Primeira Guerra Mundial, em 1916. O Dadá é a dessacralização, a desestabilização, o contraditório e o infantil – dadá – são as primeiras palavras de uma criança com o mundo caótico e complexo. Dadá diz tudo e nada e tornou-se o mais confuso dos Manifestos experimentais da Vanguarda Modernista. Contudo, denso em seu processo na guerra e no pós-guerra.

O Dadá teve reinterpretações em todos os lugares por onde passou. Era o próprio contexto internacional da Primeira Guerra Mundial articulado com artistas de outros movimentos. A linguagem visual Dadá é nonsense – nada de sintaxe, ou seja, o oposto da poética Futurista, o que não impediu seus adeptos no Dadaísmo. As colagens Cubistas e Futuristas não condizem com as colagens do Dadá. O Dadá acolheu a Metafisica e a expurgou para o Surrealismo, em 1924, acrescido de utopia e onirismo. Também recebeu Puristas e Expressionistas da Bauhaus.

Em meio as polêmicas, antifamília, anticlássico, os jovens artistas são deserdados, expulsos do núcleo familiar, ou mesmo, os próprios artistas rompendo casamentos, abandonando filhos, eventos que resultaram em brigas, quebra quebra proposital e decorrente, ou seja, fora do controle, com prisões e processos. Esses mesmos jovens que foram ao front, mataram, foram feridos, morreram ou retornaram com os traumas inevitáveis do pós guerra.

Ora satíricos, ora aberrativos. Em todo esse processo experimental, nomes como Franz Jung, George Grosz, Max Ernst, Huelsenbeck, Hausmann, Francis Picabia, André Breton, Paul Éluard, René Crevel, Marcel Duchamp, Kandisnsky, Picasso, De Chirico, Hannah Höch, Marcel Janco, Phillipe Soupault, Louis Aragon, Sophie Taueubr, Paul Dermée, Celine Arnaud, Man Ray, K. Schwitters, os outros. Sim, todos beberam do Movimento Dadá – Dadá é nada, i.e., tudo. (In: Baitelo Junior, 1994, 13)

Do Cabaret Voltaire (Suíça, 1916) à Primeira Feira internacional Dadaísta (Berlim, 1920):

“O homem dadaísta é adversário radical da exploração… Portanto, mostra o homem DADAÍSTA como VERDADEIRAMENTE real diante da fedorenta mentira do pai de família e capitalista espreguiçando em sua poltrona.” (Hausmann. In: Baitelo Junior, p. 68)

A crise da cultura internacional acionada pela guerra colocou em xeque o objeto artístico ou o conteúdo contido na obra:

A verdadeira arte será antiarte… reduz-se assim a uma pura ação… Dadá não quer produzir obras de arte, e sim ‘produzir-se em intervenções (…) o Dadaísmo propõe uma ação pertubadora, com o fito de colocar o sistema em crise, voltando contra a sociedade seus próprios procedimentos… utilizando de maneira absurda as coisas a que a ela atribuía valor. (ARGAN, 1992, p. 356)

Marcel Duchamp ao colocar um bigode na Monalisa, contestou o valor comum. Nada pessoal ao grande Leonardo da Vinci, nem mesmo a Gioconda, mas os tempos são outros. No readymade, Duchamp brincou com os valores de objetos comuns como a roda da bicicleta, o mictório e os expôs a sociedade internacional para que refletisse sobre a guerra – quando tudo ao redor é morte ou quando o progresso se interliga a morte no discurso da guerra e na associação do desenvolvimento científico e tecnológico. Por isso, o Dadá rejeitou as técnicas anteriores. O importante é que houve uma ação questionadora e pertubadora que instigou a civilização a pensar e a começar do zero: a obra é mental.

Jovens, doenças, guerras e amores

Os jovens refugiados proclamaram o Dadá em território neutro. Mas o Dadá sobrepôs fronteiras porque todos sentiam-se refugiados durante a guerra. A juventude artística gritou em Paris – os jovens combatentes poetas, pintores, articuladores do pensamento libertário promoveram encontros, escreveram em revistas, montaram exposições e performances.

A tuberculose, doença infectocontagiosa, atormentou muitos jovens dos séculos 19 e 20, embora sua existência remonte oito mil anos. O termo só foi cunhado em meados do século 19, antes era conhecido como peste branca. Muitos procuraram os bons ares em um sanatório na Suíça, obviamente dispendioso, contudo, eficaz no isolamento de bons ares dos Alpes – os ‘sanatórios’ eram comumente conhecidos como hospitais para tratamento da tuberculose.

O poeta René Crevel era um tuberculoso. Foi para a guerra e sobreviveu para ser um Dadaísta. Abandonou os estudos sobre Diderot, e já bem doente cometeu suicídio. Ele era amigo de outro Dadaísta doente dos pulmões, o poeta Paul Éluard (Eugène Emile Paul Grindel).

Paul estava internado em um sanatório quando conheceu Gala (Elena Ivanovna Diakonova), a russa por quem se apaixonou durante o tratamento. Receberam alta e cada qual foi para seu lar, ela para a Rússia e ele para a França. Entre cartas, a guerra começou. Éluard foi para o front e ficou algumas vezes hospitalizado no meio do caos.

Meu ideal não está mais no céu,

E lanço meu estribilho

Às estrelas… em teus olhos! (Paul Eluard, 1913. In: Bona, p. 36)

Em 1917, Paul e Gala se casaram em Paris durante a ocupação alemã – ela aos 22 anos e ele aos 21 anos. Gala foi o motor do amor na guerra, ela saiu da Rússia durante a queda do Império e a Revolução Russa, atravessou territórios de trem em plena Primeira Guerra Mundial.

Gala tornou-se a musa de seus poemas, musa de sua vida, mãe de sua filha e uma Dadaísta, ou melhor, a mulher de um Dadaísta, assim era o mais comum. As mulheres ajudavam, mas não eram reconhecidas, salvo exceções da poetisa Celine Arnaud (esposa de Paul Dermée – ela se suicidou em 1952, um ano após a morte do marido) e das pintoras Hannah Höch, Sophie Taeubr (esposa de Arp) e Sonia Delaunay (esposa de Robert).

“Vivam as concubinas e os concubistas!” (Picabia) Dadá odeia hábitos e convenções, tolera o amor, mas detesta o casamento. (In: Bona, 1996, 117)

Francis Picabia abandonou esposa e filhos. André Breton se separou e sua amante casada decidiu agir conforme o Dadá, e num acesso de fúria:

Destruiu fotos, cartas, livros de Apollinaire com dedicatória, textos manuscritos de Jacques Vaché e alguns quadros – dois Derain, três Marie Laurencin, um Modigliani. Inspirada pelos métodos de Tzara e seu bando – destruir tudo, dizia Dadá -, verdadeira Átila. (…) Ela apenas deixou uma mensagem em forma de poema dadaísta: “Tudo remonta à mais recuada Antiguidade, as pichações que encantam os menininhos não passam nunca de corações e triângulos cercados de fogo.” (In: Bona, p. 117-118)

A Dadaísta não oficial, Georgina Dubreuil, desapareceu depois do ocorrido. “Breton ficou em choque”: os livros e dedicatórias de Apollinaire se foram. Apollinaire foi seu amigo, poeta italiano naturalizado francês que lutou pela França – foi soldado da artilharia e sobreviveu aos ferimentos na cabeça, mas faleceu em 1918 de gripe espanhola.

Breton deixou a medicina e rompeu com a família. Em 1921 casou com Simone Kahn, considerada uma intelectual não Dadaísta. Louis Aragon também deixou os estudos em medicina e rompeu com a família.

O casal Éluard, a despeito de todos os abandonados no amor ou na guerra, manteve-se firme. A força do amor se expandiu quando em 1921, Max Ernst, um desertor da artilharia alemã e Dadaísta deserdado pelo pai, expôs em Paris suas colagens e pinturas. Tão logo Paul Éluard e Max Ernst se conheceram, tornaram-se ‘irmãos’; descobriam que por pouco não se enfrentaram na guerra em 1917, no front em Somme, eles estavam frente a frente, ambos soldados em trincheiras inimigas. (In: Bona, p. 138)

Ernst era conhecido como DadaMax, entre os títulos honoríficos Dadaístas.[i] Éluard tornou-se o melhor amigo e meio de Ernst, passando a escrever sobre suas pinturas. Também escreveram juntos poemas e passaram a dividir os braços de Gala, sem rivalidades. Éluard deixou que Gala vivesse o amor sem cobranças. Ela amou Paul e Max de maneira Dadaísta, mas o clube masculino Dadá se ressentiu de Gala. A resposta de Dadamax ao clube, foi inserir Gala numa pintura como parte do grupo Dadaísta e inseriu Doistoiéviski, abominado pelos Dadaístas e amado por Gala. Dadamax aproveitou o ensejo do amor e inseriu o Renascentista Rafael Sanzio, também abominado pelo grupo.

Em Au rendez-vous des amis,  Ernst numerou os personagens de 1 a 17… ele próprio leva o número 4 (sentado no colo de Dostoiéviski), Eluard, o número 9. Entre todos esses homens, uma única mulher, o número 16: Gala… Breton parece presidir a sessão… Aragon… Crevel toca um piano invisível… Perét como seu monóculo, Desnos meio apagado… (In: BONA, p. 155)

MAX ERNST. Le rendez-vous des amis, 1922. De pé, da esquerda para a direita: Philippe Soupault (1887-1990), Jean Arp (1886-1966), Max Morise (1900-1973), Rafael Sanzio (1483-1520), Paul Éluard (1895-1952), Louis Aragon (1897-1982), André Breton (1896-1966), Giorgio de Chirico (1888-1978) e Gala Éluard (1884-1982). Sentados, de esquerda para a direita: René Crevel (1900-1934), Max Ernst (1891-1976), Fiódor Dostoyevski, Théodore Fraenkel (1896-1964), Jean Paulhan (1884-1968), Benjamin Péret (1899-1959), Johannes Theodor Baargeld (1892-1927) e Robert Desnos (1900-1945). Museum Ludwig, Colonia.

Em 1922, mesmo com o discurso de abandonar tudo, Éluard continuou a declarar seu amor à Gala e sua enorme admiração por seu amigo-irmão Ernst, ajudando-o financeiramente. Ernst pintou muito a Gala mas algumas dessas telas foram destruídas durante a Segunda Guerra Mundial, em 1937, com o argumento de “arte degenerada”.

Paul Éluard deixou de escrever sobre as dores da guerra e passou a escrever sobre as dores do amor.

O desespero não tem asas,

Nem o amor

Não me mexo,

Não os olho, Não lhes falo

Mas estou tão vivo quanto meu

amor e meu desespero.

(Paul Éluard, Nudez da verdade, da coletânea Morrer de não morrer. (In: Bona, 167)

Paul Éluard desapareceu em março de 1924. Dois meses depois escreveu a Gala do Taiti.  Paul, Gala e Max se reencontraram em Saigon. De lá, retornaram Paul e Gala sem Max Ernst. Ao chegarem em Paris, o Surrealismo eclodiu sob a égide de André Breton.

Referências:

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Tradução Denise Bottmann & Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

BAITELO JUNIOR, Norval. DADÁ-BERLIM DES/MONTAGEM. São Paulo: ANNABLUME, 1993.

BONA, Dominique. GALA. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 1996.

BORRÀS, Maria Lluïsa. PICABIA. New York: Rizzoli, 1985.

COUTO, Renan Cardozo. A Imagem conceitual – uma contribuição ao estudo da arte contemporânea. Tese de doutorado, 2012. UFMG. (consulta em setembro 2020) https://docplayer.com.br/9082502-Ronan-cardozo-couto-imagem-conceitual-uma-contribuicao-ao-estudo-da-arte-contemporanea.html

DIEHL, Gaston. Max Ernst. New York: Crown publishers, 1973.

GOMBRICH, Ernst H. J. História da Arte. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.

MADEIRA, Gisele (dissertação) Pulsações de formas, cores e temas: imagens do cotidiano da obra de um artista (1967 a 1988) PUC/SP, 1995.

MENEZES, Philadelpho. A crise do passado. São Paulo: Experimento, 1994.

SANOUILLET, Michel (apresentação) DADÁ – Réimpression intégrale et dossier critique de la revue publiée de 1916 à 1922 par TRISTAN TZARA. Nice: Centre du XX e siècle, 1976.

SCHAPIRO, Meyer: A Arte Moderna séculos XIX e XX. Tradução Luiz R. M Gonçalves. São Paulo: Edusp, 1996.

STANGOS, Nikos (Org.) Conceitos da Arte Moderna. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.


[i] Havia uma relação de dadaístas como títulos honoríficos. Raoul Hausmann era Dadásofo; George Grosz era Politidadá; Richard Huelsenbeck era Dadamundi; Franz Jung era Dadanarquista, entre outros. In: Baitelo Junior, 1994, p. 106)


Série Movimentos de Vanguarda IV – DADÁ/DADAÍSMO, parte II

30 out

por Gisele Miranda & Lia Mirror

Hoje, a antiarte é praticamente um nome agressivo para a arte moderna. Para Duchamp, porém, ela aparecia como a fratura possível entre o gesto criador e o objeto artístico. (Rodrigo Naves. Duchamp: cínico, cético, trágico. In: O vento e o moinho, 2007, p. 441.)

&

“Só um detalhe diante de todo esse massacre, que ainda visualizo… uma mulher, deitada de costas, no chão, atada ao eixo de um carro pelo pescoço e ombros, para não poder virar a cabeça. Ela não havia sido queimada nem degolada viva. Mas sua expressão estava convulsionada. Claramente ela havia morrido de pavor. Diante dela, havia uma grande estaca fincada no chão. E um bebê nu, amarrado nela. Totalmente queimado, os olhos arregalados. Ao lado, uma grelha com cinzas de carvão” (1)

A participação de Marcel Duchamp (Blainville-Crevon, França, 1887- Neuilly-Sur-Seine, França, 1968) no DADÁ e sua renúncia voluntária à uma arte rica em material sensível, foi de uma coerência histórica, ética, cínica e cética (2) em meio a tragédia da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e das guerras concomitantes.

Duchamp estudou o Impressionismo, flutuou entre o Fauvismo e o Cubismo e não se interessou pela teoria do Futurismo, mas se encontrou com a antiarte Dadá. No Surrealismo chegou a ser considerado por Breton, o homem mais inteligente do século 20. (3)

O século 20, abarcou as duas grandes Guerras Mundiais como males necessários que através dos tempos tornou-se uma calamidade tolerada. A guerra é a grande pátria, honorável pela coragem de seus soldados e sagrada em nossa história – dos deuses aos santos e sob as imposições politicas e religiosas.

Marcel Duchamp fugiu da guerra e de todo o discurso de tolerância. Ele saiu da França e foi para os EUA, em 1914. Quando o patriotismo estadunidense foi à guerra, em 1918, ele embarcou para a Argentina – um país neutro. Lá ficou sabendo da morte de seu irmão Pierre Maurice Raymond Duchamp Villon (1876-1918), artista, soldado e médico que morreu de febre tifóide no final da guerra.

Marcel Duchamp (1887-1968). Foto Man Ray, 1916.

Também tomou conhecimento da morte de escritor e pugilista Arthur Cravan (1887-1918), Dadaísta controverso, de tom e gestos agressivos (4), contudo um Dadá convicto que ao fugir da guerra, como desertor, foi para o México com a poeta Mina Loy (1882-1966) e se casam. O dinheiro da passagem dela para os EUA foi conseguido com uma luta de boxe da qual Cravan entrou bêbado no ringue e foi nocauteado por um pugilista profissional. Após o Dadá-boxe, Cravan embarcou em um barco sozinho, com a promessa de encontrar sua amada Mina Loy nos EUA, mas ele desapareceu no Golfo do México, para onde levou sua maior obra Dadá, mas antes não resistiu ao casamento tal como Duchamp, Breton, entre outros, lembrando que sempre foram anticasamentos.

A bandeira de Duchamp se desdobrou em não gerar filhos para a guerra, pois a guerra tornou-se outra grande guerra. As duas grandes Guerras Mundiais foram marcas históricas da geração desses artistas. Por isso, nenhum teórico foi mais coerente (embora tenha casado duas vezes (5). Duchamp se defendeu o quanto pode da família, ou da sociedade que, segundo ele, força você a abandonar suas ideias reais para trocá-las por coisas aceitas por ela. (6)

O ver, puramente retiniano tornou-se empilhamentos de corpos, fugas e barbáries. Tudo com muito cheiro de carne humana. A fase dadaísta de Duchamp, foi intensa no aprimoramento Conceitual na Arte, paralelo a morte da pintura, com o odor nauseabundo do contexto histórico, do qual teorizou e criou uma vanguarda dadaísta. Sua irmã, Suzanne Duchamp (1889-1963), a quarta dos seis irmãos Duchamp, também era artista e partícipe do dadaísmo, além de enfermeira na guerra.

Suzanne manteve estreitos laços com seu irmão Marcel. Assinou o Manifesto Dadá, em uma contraposição ao fascismo Futurista de Marinetti.  Ela se tornou uma Dadaísta, a partir do conhecimento minucioso sobre os ready-mades e a necessidade do Conceito da arte-não arte de Marcel Duchamp.

Suzanne se casou em 1919 com o pintor suíço Jean Crotti (1878-1958), amigo de Marcel Duchamp. Crotti também assinou o Manifesto Dadá. Suzanne Villon Crotti, mesmo com sua boa arte alcançou pouco, como as demais mulheres de sua época. O irmão mais velho de Marcel e Suzanne , Gaston Duchamp (1875-1963), também foi artista e ficou conhecido pelo peseudônimo Jacques Villon; na guerra ele foi um soldado-cartógrafo.

Francis Picabia (1879-1953) foi o motor do Dadá suíço na França, nos EUA e na Espanha. Ele, por sorte, não foi deserdado pelo pai, prática comum naquela época. Casado desde 1909 com a escritora e crítica de arte Gabrièle Buffet (1881-1985), ele vivia de regalias financeiras que foram suportes para viagens, investimentos artísticos, ajuda aos amigos e tipografias de duas revistas criadas para o Dadá. Picabia foi um Dadá rico e com uma arte rica em teoria, amigo dos irmãos Duchamp e de forte laço com Marcel Duchamp – que sempre afirmou ter sido Picabia o articulador, a voz artística do Dadá em várias linguas. Picabia foi um dos poucos a não abraçar o Surrealismo, em 1924. (7)

O tripé, Marcel Duchamp, Picabia e Man Ray (1890-1976), criou o Dadá Conceitual, a partir de encontros de longas interlocuções.

Man Ray foi o pseudônimo de Emanuel Radnitzky, fotógrafo dos Impressionistas, Expressionistas, Fauvistas, Cubistas, Dadaístas e Surrealistas. O Dadá o instigou a criar, interferir e registrar. Man Ray enriqueceu e ampliou o conceito de fotografia e com Duchamp foi para o Surrealismo.


(1) Texto retirado do filme: MALMKROG. Direção Cristi Puiu. Co-produção Romênia, Sérvia, Suíça, Bósnia-herzegovina, Macedônia do Norte, 2020. Cor. 200 min. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Baseado no texto do filósofo Russo Vladimir Soloviov. No filme, a personagem lê uma carta de seu marido, um general cossaco que relata o massacre de uma aldeia Armênia pelo Turcomanos, durante a Primeira Guerra Mundial. A intenção aqui, é mostrar os conflitos concomitantes a Primeira Guerra, período tratado nesse texto.  A carta dizia que os soldados Turcomanos deixaram uma cozinha: assaram mulheres e crianças vivas; além do estupro, seios arrancados, barrigas abertas.

(2) NAVES, Rodrigo. O Vento e o Moinho: ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.  p. 437-438.

(3) CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 24.

(*) Independente do desinteresse de Duchamp pela teoria do Futurismo, algumas obras foram consideradas do Futurismo. Seus irmão Jacques Villon e Raymond Villon também têm obras do período da efervescência do Futurismo. O mesmo ocoorreu com Max Ernst, Picabia, Picasso, entre outros . In: Futurismo & Futurismi: a cura di Pontus Hulten. Milão: Gruppo Editoriale Fabbri Bompiani, 1986, p. 280-281; 282.; 287.

(4) Segundo Duchamp: Cravan insultou muitas pessoas, entre elas, Sonia Delaulay e Marie Laurencin, no Salão dos Independentes, em 1914. Criando inimizades.  In: Cabane, p. 89.

(5) Casou duas vezes. O primeiro casamento com Lydie Sarazin Levassor, de 1927 a 1928 – foram 6 meses de casamento até o divórcio consensual, com as testemunhas vitais de Picabia e Man Ray. O segundo casamento com Alexina Duchamp, de 1954 a 1968; Alexina, no casamento anterior, foi nora de Henry Matisse.

(6) Cabanne, p. 131. Resposta de Duchamp sobre a pergunta de Cabanne: Você se defendia sobretudo da família.

(7) Picabia se indispôs com André Breton, mesmo assim, Breton chegou a divulgar uma obra de Picabia em uma revista Surrealista.

Referências:

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Tradução Denise Bottmann & Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

BAITELO JUNIOR, Norval. DADÁ-BERLIM DES/MONTAGEM. São Paulo: ANNABLUME, 1993.

BONA, Dominique. GALA. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 1996.

BORRÀS, Maria Lluïsa. PICABIA. New York: Rizzoli, 1985.

MAN RAY Fhotographe. Introduction Jean-Hubert Martin. Paris: Philippe Sears, 1981.

SCHAPIRO, Meyer: A Arte Moderna séculos XIX e XX. Tradução Luiz R. M Gonçalves. São Paulo: Edusp, 1996.

STANGOS, Nikos (Org.) Conceitos da Arte Moderna. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

Oswald de Andrade: “O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo”[1]

30 out

por Gisele Miranda & Lia Mirror

Resgate histórico e artístico

Para dialogar historicamente com essa fase de Oswald de Andrade é necessário resgatar a base institucional e artística adaptada aos trópicos, ou seja, a importância do Neoclassicismo Francês no Brasil, perfilado por um Barroco endógeno e um percurso academicista cutucado pelo nacionalismo internacional da Primeira Guerra Mundial e dos Movimentos da Vanguarda europeia. Sabemos que toda essa história culminou na Semana de Arte de 1922.

Quando finda o Neoclássico na França, começa uma nova adaptação do Neoclássico no Brasil com a chegada da Missão Artística Francesa, em 1816. Em seguida, o Realismo francês assumiu uma importante função social até a entrada dos Movimentos de Vanguarda quando os valores estéticos, técnicas, aspirações são discutidas através de inúmeras possibilidades. No Brasil, a lingua francesa entranhou nos costumes no Império. A base da arte no Brasil derivou de um discurso monárquico que se desdobrou em um academicismo subserviente para os artistas nascidos aqui.  

No mais, o Barroco no Brasil não terminou no século 19, com a vinda dos Neoclassicistas franceses, segundo Eugenio D’Ors (Machado, 2003), o Barroco criou uma amálgama conceitual chamada EON (potência re-criadora), hoje encontrada nas igrejas neobarrocas.

O processo histórico, cultural e artístico brasileiro de 1922 equiparou, não facilmente, as discussões sobre a Arte Moderna na Europa. Sabemos, muito claramente, a importância do Expressionismo de Anita Malfatti (de seus estudos na Alemanha e EUA), que lhe valeu a histórica crítica negativa de Monteiro Lobato, mas também, a histórica defesa de sua arte por Oswald de Andrade, entre outros. Sabemos da importância do Cubismo em Tarsila do Amaral (e seus estudos na França), do Surrealismo em Ismael Nery, enfim, tivemos representantes dos movimentos da vanguarda europeia, além de teóricos de nossas próprias manifestações com Oswald de Andrade e Mario de Andrade, antropofagicamente e de reconhecimento de nossa cultura.

Mas, e o Dadá no Brasil? As premissas do Dadá não foram fáceis de serem assimiladas, seja pelo discurso antiarte ou antiguerra. O Brasil esteve neutro em quase todo o período da guerra. E a elite cafeeira em processo de urbanização e industrialização, contudo, a política e a economia dependentes de países em guerra. Com características particulares essa elite, em 1914, apenas 26 anos da abolição da escravidão no Brasil -, aceitou o abandono dessa população, a limpeza social e fluxo migratório (branco) como mão de obra substituta.

Nossa segunda lingua era o francês e a nossa elite de ascendência estrangeira. Os filhos bem-educados, poliglotas estavam sempre antenados aos acontecimentos na França e, posteriormente, nos EUA.

Do ponto de vista artístico, o intelectual e escritor Oswald de Andrade, já em artigo de 1912, reclamaria características nacionais para a arte do país, reivindicando uma forma de expressão que não fosse a arte acadêmica consagrada na Europa. (AMARAL, 2004, p. 22)

Antes de ser um teórico da Semana de Arte de 1922, de criar o Manifesto Antropofágico, Oswald foi o Cozinheiro das Almas, em um reduto masculino, alimentado pela liberta DadaCyclope.

La femme Cyclope, uma história de amor

Alguns dos intelectuais da cidade de São Paulo foram acolhidos por Oswald de Andrade, em 1918, registrado em um diário de encontros do cozinheiro com as almas perdidas.  O anfitrião e seus convidados, em português ou em francês, debatiam ou escreviam, filosofavam, faziam críticas, desenhavam, colavam, nem sempre com sentido, pois experienciavam possibilidades, brincavam com seus codinomes, bebiam e comiam. O contexto artístico-literário desse momento tinha a “verve parnaso-a-cadêmica …nossa leviana e retardada belle èpoque.” (2)

O reduto intelectual masculino amalgamado pour la femme Cyclope quebrou protocolos, discursos da época e a quebra de seus pares frente à uma mulher que ia e voltava sem nada dizer ou dever. Não só, de inteligência impetuosa e poética.

Cyclope, um dos apelidos, tal como todos os reunidos. Mas o que se passou entre 1917 e 1919 transformou a todos, dolorosamente, com a morte da jovem poeta.

Oswald de Andrade e Maria de Lourdes, Ou, Miramar e Cyclope, c. 1917.

Eles vinham comparando-a com Dulcinéa, o amor de dom Quixote. Ela respondia na escrita: – Primeira receita – Nos casos de amor á Dulcinéa prefira-se a Dulce núa. Foram Inúmeros textos com derivações à Cyclope: A Cyclope é o grande vício desta vida (3). Até o último instante ela não parava de expressar.

Começo a prever que também já tenho meu coração de moça, e de menina, estrangulado por um sentir devotado e malígno, mordido pela volupia da vida incognita que me offerecem. (4)

Evidentemente, todos esses atributos mexeram com seus admiradores, mas no covil, ela era la femme de Oswald de Andrade. Fora do grupo, Cyclope amava em liberdade quem quisesse. Oswald sabia e a respeitava. Ela era o riso inteligente de uma boa conversa; era a volúpia diante dos valores morais da época. Desde cedo, uma poeta de lingua afiada. Viveu pouco, partiu como muitas mulheres, até hoje, decorrente de um aborto clandestino malsucedido. Sua poesia sumiu, perdeu-se no reduto masculino. Ela era “um embrião caótico”, “musa polifônica”, “musa palimpséstica” em ‘guerra’ com o universo masculino… ela era a novidade da estrutura aleatória e da forma ready-made para o Pré Modernista de 1922. (5)

Todos a amavam, até mesmo, os inicialmente reticentes. Outros explicitamente desejavam-na com total ciência de Oswald. Ela era o manifesto Dada em pessoa, em um núcleo intelectual elitista, em parte, conservador. Todos a respeitavam porque ela os enfrentava. Cyclope bailava entre eles; essa era a beleza que transbordava.

Por fim, a nota de falecimento de Cyclope e a referência do tempestuoso casamento com Oswald em seus últimos dias. Ela só tinha dezenove anos. Todos os manuscritos dela se perderam – Oswald, em um determinado momento da vida, assumiu a culpa da perda desses manuscritos, pois estavam com ele. Quanto a culpa pela morte anunciada, ao sabê-la moribunda, colocou-se responsável, casando-se com ela.

Dona Maria de Lourdes Castro de Andrade – falleceu, hontem, nesta capital, a exma. Sra. Maria de Lourdes…., ha dias casada como nosso distincto collega de imprensa e ex comoanheiro de redação, bacharelando Oswald de Andrade.  (…) A Dayse o teu pobre Oswald… (Agosto, 25, 1919. Colagem de recorte de jornal na última página do Diário Coletivo)

Nota de falecimento de Cyclope, 25 de Agosto de 1919. Colada na última página s/n do Diário Coletivo.

Referências:

AMARAL, A. A. Artes Plásticas na Semana de 22. São Paulo: Editora 34. 1998, segunda Reimpressão, 2004.

ANDRADE, Oswald de. O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo. Diário coletivo da garçonière de Oswald de Andrade. São Paulo, 1918.Edição fac-similar. Textos de Mário da Silva Brito & Haroldo de Campos. Transcrição tipográfica de Jorge Schwartz. Editora Ex Libris, 2015. (A Garconière era o codinome do apartamento).

MACHADO, Lourival. Barroco Mineiro. São Paulo: Perspectiva, 2003.

MICELI, S. Nacional Estrangeiro: História Social e Cultural do Modernismo Artístico em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

WALKER, José Roberto. Neve na manhã de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.


(1) O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo: Diário coletivo da garçonière de Oswald de Andrade. Coletivo da garçonière de Oswald de Andrade. São Paulo, 1918. As citações mantêm a grafia original da época, assim como nesse texto.

(2) Réquiem para Miss Cyclope, musa dialógica da pré-História textual Oswaldiana, p XVI. IN: Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo, 1918. Outros nomes de Cyclope: Daisi (Dayse), Dasinha, Miss Terremoto, Tufãonzinho. Oswald era Miramar; Os adeptos se reuniram na rua Líbero Badaró, região central de São Paulo. Entre os  participantes estavam: Menotti del Picchia, Ricardo Gonçalves, Fer­rignac, Monteiro Lobato e Guilherme de Almeida.

(3) Idem, página 9.

(4) Idem, p. 18.

(5) Idem, p. XVI a XXII. Segundo Oswald, a decisão do aborto foi de Cyclope, porque ela não queria ter, ademais, não sabia quem era o pai. Ele a apoiou e esteve ao seu lado até o fim.

Série Ficcional H. Miller XXX: a casa divã

21 mar

Por Lia Mirror (1986-2021)*

“…Meu coração de criança
Não é só a lembrança
De um vulto feliz de mulher

Que passou por meus sonhos
Sem dizer adeus
E fez dos olhos meus
Um chorar mais sem fim

Meu coração vagabundo
Quer guardar o mundo em mim…”

(Coração Vagabundo de Caetano Veloso, 1967)

Caro coração vagabundo. Por que não se cansa de ter esperança? – Porque quando esse coração nasceu caiu nos verdes prados e germinou, ademais, rompeu com “as paredes que foram criadas pelo nascimento”, diria Henry Miller. Não houve proteção nos caminhos escusos onde cruzam falésias e poços. Por um lado, a secura do ar que entorpece todo o corpo, por outro, o cheiro e o limo:

– E, “ a gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço…” (1), assim como em cada falésia.

Da solitária Caverna de Platão, o coração foi ao encontro de outras cavernas nas agruras da vida, em becos de esperanças e de medos, mas com a fé do feirante, do lixeiro, da vendedora de rua, das carroceiras à Clarice.

O vento elixir que norteia disseminou em seu corpo e o rejuvenesceu, mas o reflexo insiste no tempo transcorrido: “No espelho essa cara já não é minha…” (2). Não há cansaço, há desejos, há vida, quebra de tabus e criações de totens: “Rapte-me, adapte-me, Capte-me. It’s up to me, coração!” (3)

Deveria ter sido o porto seguro mas VIVER, qualquer que seja o porto vive-se o corpo que coabita a casa divã e por mais “fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir que.”*

– “não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim?”** 

Louise Bourgeois, Femme Maison (1945-1947), desenho.

Entre os poços há um vai e vem onde o coração aprendeu a amar, sobrevivendo as tempestades e aportando, ora ou outra, para transpor muros impressos, carimbos e assinaturas de exclusões.


(1) Caio Fernando Abreu, o ovo apunhalado, “Nos poços”, 1975.

(2) Arnaldo Antunes, Não vou me adaptar, 2007.

(3) Caetano Veloso, Rapte-me, Camaleoa. 1981.

* Caio Fernando Abreu, o ovo apunhalado, “Nos poços”, 1975.

** Caio Fernando Abreu, o ovo apunhalado, “Nos poços”, 1975.

(*) Esse foi o último texto de Lia Mirror; ela faleceu em 21 de março de 2021. Entre os seus pertences estava este rascunho, talvez incompleto – Publicado In Memoriam.  Além do texto encontrado, havia um livro com uma página marcada: “Escrever é o ato, no entanto, mais corajoso que existe. Você coloca uma arma contra a própria cabeça e às vezes dispara. A arma pode ser a própria desesperança nas coisas, a fé ruindo feito qualquer prédio antigo do centro da cidade, a saudade de alguém que nunca esteve, e mesmo assim você escreve porque é o que te parece mais natural e inviolável, afinal, ninguém colocaria todos os edemas nas folhas de papel como você.” (Silva, I. P. 2017, p. 49)

A Fé de Clarice

21 jan

por Gisele Miranda & Lia Mirror

“Andar com fé eu vou

que que a fé não costuma faiá

A fé tá na maré (…)

A fé também tá pra morrer

Oh oh

Triste na solidão…”

Gilberto GIL (1942-), Andar com Fé, 1982.

Tristes mares dessa escrita que rasga e insurge das profundezas. Onde a Fé oscilou, Gilberto Gil cantou e fez Kofi Annan (1938-2018), tocar e dançar no encontro de culturas irmãs (brasileira e ganesa), numa ação que moveu os representantes humanitários do mundo, onde todos se levantaram para aplaudir, dançar e entender um pouco da História do Brasil e da África. Na época, Kofi Annan era secretário geral da ONU (de 1997 a 2006) e vencedor do Nobel da Paz em 2001; e Gilberto Gil, Ministro da Cultura do Brasil e embaixador da Onu para a agricultura e alimentaçõa  (de 2003 a 2008).

E pensar que Gil e muitos, de 1964 a1985, foram presos, muitos torturados, alguns sobreviveram com sequelas, outros morreram ou desapareceram.  Os vinte e um anos de Ditadura Militar no Brasil foram resgatados pela Comissão da Verdade, que nasceu em 2011. O grande passo nos aproximou dos nossos irmãos Argentinos através da luta e reconhecimento das Avós da Praça de Maio (desde 1977); dos Uruguaios, pelo reconhecimento da luta política de Pepe Mujica (1935 -). É uma lição, saber do duro isolamento e da resistência de Mujica, que nos remete também a prisão de Nelson Mandela (1918- 2013) – e uma história que também é nossa.

As Fakenews acionaram seus canais de esgotos e fizeram da nossa Comissão da Verdade “uma paz sem voz, que não é paz é medo”. (1) A violência endógena de nossa História do Brasil abriu as feridas de séculos. Um país em que os professores apanham do Estado, tornou-se um marco histórico de 29 de abril de 2015, em Curitiba. Depois disso, tivemos um presidente que cuspiu no tributo da família Rubens Paiva, insultou a mulher que todas nós somos, Maria do Rosário e Maria da Penha. A virulência personificada atiçou a misoginia desse país recalcado pelo ‘coronelismo’, visto e ouvido em rede nacional, em plenos jogos olímpicos, em 2016, em um coral que até hoje dói, reverbera e que abriga o alto índice de feminicídio.  Através de um coro misógino tiraram uma grande mulher presidente, violentada e difamada duas vezes na História do Brasil.

Quem mandou matar MARIELLE FRANCO (1979-2018)? Somado a isso, uma pandemia mundial frente ao negacionismo presidencial: – “E dai?”, pergunta o genocida do Brasil aliado ao estadunidense Trump – os dois negacionistas são responsáveis pelas duas primeiras colocações no ranking de mortos.

Os EUA se livraram do genocida deles. No Brasil, a República sobreviveu ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e a tentativa de golpe dos fanáticos que ignoram as feridas crônicas de nossa História e que querem mais sangue, mais mortes, mais armas, mais torturas.

Quem são os humanos que podem ser chamados de humanos? “Vidas negras importam”, lá nos EUA, aqui e em todo mundo humano. Tudo nos afeta, sem afeto, sem memória, sem história e “uma classe média” mais violenta do que nunca, que ora se esconde e ora mata – mata o filho da empregada, alimentado pelo colonialismo, pelo racismo, enfim, tudo calcado em um neofascismo.

Esse neofascismo (em sua terceira fase) tem a raiz conceitual no salazarismo, no franquismo, no ‘varguismo’ e no pós Segunda Guerra Mundial, deu origem ao neonazismo. Contudo sua temporalidade é outra, seus personagens e valores históricos são outros. Podemos pensar o conceito e ampliarmos à virtualidade fascista de 2020-2023 e os novos núcleos de combate. O neofascismo pertence as sociedades democráticas e capitalistas, algumas frágeis e em  processos democráticos.

Quais os movimentos atuais que são alvos e resistem? Por que resistem? – Resistem as mortes. A quem resistem?  – a quem MANDOU MATAR!

A política alt-right vem promovendo: “o racismo e a supremacia branca; a misoginia, o sexismo e condutas LGBTQfóbicas; o autoritarismo, a recuperação idealizada de uma ordem passada e discursos genocidas” (2). Essa política é a face do neofascismo. E quando tudo isso vem agregado às ‘rachadinhas’ ou do assalto histórico do Estado? As lutas foram divididas em grupos específicos, mas os neofascistas não dividiram suas bandeiras.

Estamos em guerra (fria). No meio do discurso da política de segurança nacional há superencarceramento. Na política antiterrorista há xenofobia. Já não respiramos porque a polícia mata, a milícia mata. O vírus mata e o político manda matar.

Quem deve morrer? Quem pode viver? As respostas tem muito do devir negro no mundo. No Brasil o devir negro é a resposta para quem morre, porque existe a política colonizadora. Como uma sociedade Democrática se comporta com tanta desumanidade histórica? -“o levante antirracista e antipolícia, nada mais é do que uma autodefesa em meio à necropolítica securitária…” (3) Vidas indígenas importam. Vidas negras importam.

Subnotificações são descartes da vida em regiões periféricas; os desempregados tem status de emprego informal para não contabilizar o altíssimo desemprego. As famílias estão morando nas ruas. Nas ruas e nos transportes públicos as pessoas clamam por comida. Pessoas oferecendo seus CVs e vendendo balas em coro: “por favor, me ajudem!” Nós choramos e escrevemos; as aulas tem sido nas ruas, nos trens, no repente necessário porque as vozes não podem calar.

Somado a tudo isso, a tragédia dos refugiados, 80 milhões de pessoas perseguidas por questões políticas, religiosas e étnicas. Entre as nações que mais geraram refugiados, está a Venezuela. A Turquia, outrora negacionista do massacre Armênio, tornou-se o país que mais acolhe refugiados. A Alemanha, outrora genocida nazista, “tem aberto o país para o acolhimento de refugiados e busca inserí-los na sociedade alemã.” (4)

O mundo está uma loucura. Nossas resistências tem sido um devir Clarice Lispector (Chechelnyk, Ucrânia, 1920- Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1977), pois estamos “atrás do que fica atrás do pensamento” (5)… tecendo a vida com a própria coragem e com A fé de Clarice: porque ela sabe quanto importa o outro, ela sabe pedir, ela sabe rezar. (6)

Gordon Matta-Clark (NY, EUA, 1943-Idem, 1978) Veículo de transportar Oxigênio, 1972.


(1) Rappa, Minha Alma (A paz que não quero), 1999. Alexandre Menezes, Lauro de Farias, Marcelo Lobato, Marcelo Falcão, Marcelo Nascimento Vi Santana. https://www.youtube.com/watch?v=dixEvTzhlaY&ab_channel=ORappa; Sobre a violência aos professores em 29 de abril de 2015 https://tecituras.wordpress.com/2015/06/24/da-31a-bienal-de-sao-paulo-como-coisas-que-nao-existem-a-29-de-abril-de-2015/

(2) Acácio Augusto. Cem anos depois, um novo fascismo. In: CULT, Ano 24, janeiro 2021, p. 9.

(3) Camila Jourdan. Quando vidas são descartáveis, nenhuma vida é um valor em si. In: CULT, Ano 24, janeiro 2021, p. 15.

[4] Alex Ricciard. “onde está meu irmão sem irmã, meu filho sem pai ? In: Revista Aventuras na História – A crise dos Refugiados, Dezembro de 2020, p. 36. 

(5) Evando Nascimento. O humano e o não humano, p. 27. In: Cult Clarice Lispector, ano 23, dezembro 2020, edição 264. Edição primorosa coordenada por Daysi Bregantini.

(6) Marcela Lordy. Por que amamos Clarice, p. 51. In: Cult Clarice Lispector, ano 23, dezembro 2020, edição 264.

Série Ficcional H. Miller XXVIII: Coração

12 jun

por Lia Mirror

“… o espírito é como um rio que procura o mar. ” (Henry Miller)

“- Pode entrar, Dr. Fausto lhe aguarda. ”

Apreensiva adentrei novamente o consultório. De imediato avistei Dr. Fausto e o elogiei pela aparência ´jovem´; a minha corria o tempo dos mortais.  E mesmo com a alma comprometida (1) fui agraciada pelas belas palavras do doutor ao se referir a mim, como uma ´jovem liberta´ devido a constância nos estudos. Disse enfaticamente: – “estudar nos torna jovens! (2)

– “Caríssima, o que a trouxe dessa vez? Ainda há um coração? Ou devoraste o teu como Rimbaud? “

Coração coeur-de-louise bourgeois, 2004
Louise Bourgeois (Paris, França, 1911- Manhattan, NY, EUA, 2010), HEART, 2004.

– Meu coração pesa muito; é como o coração de um beija flor. Há um coração e um Dürer.

– “Desculpe doutor, o sr. Thomas Mann pede urgência! ”

– “Fausto, meu caro.  Venho interceder por esse coração… se a alma não foi vendida pela juventude, o coração não deve ser leiloado.  Uma alma pelo Dürer é a abdicação do ego. Dürer será preservado! Deixe-a ir. Interfiro nessa escrita por conhecer o que sustenta esse Ser. “

corações louise 2006
Louise Bourgeois (Paris, França, 1911- Manhattan, NY, EUA, 2010), Untitled (Hearts), 2006.

Dr. Fausto riu como Mr. Ryde e respondeu como Dr. Jakyll, por conseguinte, como H. Miller. Como se não faltasse mais nada, Robert Louis Stevenson invadiu o consultório aos berros. Mann e Stevenson chegaram a esboçar um confronto, então, gritei a efusão literária até falhar a voz. O coração era meu, a dor era minha. Peguei minha bolsa e saí sem olhar para trás.

A transformação foi imediata: “pele por escamas, pernas por cauda, guelras e música” (3): ao MAR me entreguei. ‎

Referências:

(1) Minha Alma Imortal

(2) MANN, Thomas. Doutor Fausto. Tradução Herbert Caro. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1952. Volume II, p. 417.

(3) A(…)MAR ou “vivendo com saudades”

Série Ficcional H. Miller XXVII: O corpo por um fio

13 abr

por Lia Mirror

Se você não conseguir fazer com que as palavras trepem, não as masturbe.

(Henry Miller)

Em um daqueles dias torrencialmente chuvosos corri pelas ruas como um dia de sol. O sol era interno no manicômio do meu corpo. Despi as vestimentas morais e ri dos insanos olhares. Molhada também de prazer, torci o peso do encharque e continuei bendizendo o desejo. Blasfemei os tropeços e me joguei como um tênis sobre um fio de alta tensão.

Louise Bourgeois (Paris, França, 1911- Manhattan, NY, EUA, 2010)  Arch of hysteria, 1993.

Por alguns segundos oscilei como um pêndulo; mas logo caí. A queda foi amortecida pelo divã abandonado. As mãos protegeram-me do embate corporal, mas as linhas foram alteradas, foram reescritas. Levantei e caminhei contra o tempo. Confrontei e abri frestas subterrâneas. Nadei rios de correntezas e subi o morro para avistar o mar. Era o meu morro do nascimento. Meu Morro, Morro de saudades. Meu desejo, Morro de desejos.

Ao poetizar o Morro dei conta de que nosso encontro não estava previsto. Insurgimos e esculpimos nosso próprio tempo. Nossa mistura de segredos e diferenças. O gosto do gozo. O prazer da ficção.

Série Ficcional H. Miller XXIV: ´minha alma imortal´

2 ago

por Lia Mirror, Gisèle Miranda e Laila Lizmann

 

“… Minha alma imortal… que venha a manhã com brasas de satã…”

Arthur Rimbaud (Charleville-Mézères, 1854- Marselha, 1891)

Decidi colocar minha alma à venda. Corri para conversar com Thomas Mann que de imediato indicou-me o dr. Fausto. Antes de assumir sua dialética visão de liberdade que lhe valeu a alma, gritei:  – minha alma imortal está à venda!!!

Exclui a carne tal como ele (s). Quanto vale minha alma? Um Dürer? Afinal, todos os planetas convergem para o signo de Escorpião bem como mestre Dürer os desenhou sabiamente no folheto medical. (1)

Minucioso Dürer! Os bons sentidos te louvam por suas gravuras; só o olhar próximo pode dimensionar o tamanho do que você fez. Percorro cada centímetro dos seus sentidos. Ah, essas Luzes do Norte!

Dürer  o cavaleiro e o demônio

Dürer (Nuremberg, 1471 – Nuremberg, 1528), O Cavaleiro, a Morte e o Demônio, 1513. Gravura sobre metal 25,19 cm.

Inclino-me a comparar sua solidão com um abismo, no qual se aprofundam, sem ruído nem rastro, os sentimentos…, disse-me dr. Fausto em consulta. (2) Interrompi sua fala para dizer que segundo meu amigo ancião: – a solidão é um porvir para poucos! Complementei cantarolando: …vou botar minha alma à venda… nada vem de graça, nem o pão nem a cachaça… [3]

Dr. Fausto riu como Miller. Meus olhos foram atravessados a nado. Nesse percurso vi e ouvi trechos do escárnio da vida. Alguns vinham de Henry Miller, outros de Thomas Mann até chegar Robert Louis Stevenson.

Ao ampliar meu olhar naquele mar de palavras, vi o retrato de Dorian Gray. Pedi a dr. Fausto que parasse com aquela miscelânea e que fôssemos direto ao ponto, ou seja, a venda de minha alma.

Dr. Fausto riu como Mr. Ryde. Vi uma figura que “assemelhava-se a uma gravura de Albrech Dürer – uma mistura de todos os demônios sombrios, irascíveis, taciturnos…” (3).

Quando dei por mim, ouvi em sussurros…sua alma merece um Dürer, disse Miller. dürer detalhe o cavaleiro... 1513

Dürer (Nuremberg, 1471 – Nuremberg, 1528), Detalhe da assinatura de Albrecht Dürer em O Cavaleiro, a Morte e o Demônio, 1513.Notas:

(1) Mann, 1947: 313

(2) Mann, 1947: 11

(3) Zeca Baleiro, Babylon, 2000.

(4) Henry Miller, Trópico de câncer 

Referências:

MANN, T. Doutor Fausto (I). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1947.

MILLER, H. Trópico de Câncer. Trad. Aydano Arruda. Rio de Janeiro: O Globo: São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.

RENASCIMENTO Alemão: gravura da coleção Rothschild colletion. Texto Teixeira Coelho, Pascal Torres. São Paulo: Comunique Editorial, 2012.

STEVENSON, R. O estranho caso de Dr. Jakyll e Mr. Ryde. Rio de Janeiro: Clássicos Econômicos Newton, 1996.