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Julio Le Parc, o Alquimista

14 nov

por Gisele Miranda

Julio Le Parc (1928-) é um artista Cinético. Ele incorporou sua “alquimia” aos estudos de László Moholy-Nagy (1895-1946) e a teoria de Alfréd Kemény (1895-1945) e fertilizou a Arte Cinética, trinta e oito anos depois com a criação do GRAV – Groupe de Recherche d´Art Visuel, em 1960, dos quais foram membros: Horacio Garcia-Rossi (1929-2012), François Morellet (1926-2016), Francisco Sobrino Ochoa (1932-2014) e Jean Pierre Yvaral (1934-2002).

As experiências foram observadas em temporalidades e técnicas justapostas. Da importância do ‘ar’ através dos móbiles de Alexander Calder (1898-1976) nos anos de 1950, em meio a fabricação de brinquedos para resgatar o lúdico pela fonte de energia natural e com as cores de Piet Mondrian (1872-1944) e Joan Miró (1893-1983). Nessas metamorfoses foram criadas as intervenções vibratórias, a energia (seja natural ou não), do pictórico ao escultural de Jesús Rafael Soto (1923-2006), Carlos Cruz-Diez (1923-2019), Liliane Lijn (1939-), Martha Boto (1925-2004), entre outros, até Le Parc interferir com sua premissa da Luz – seus efeitos e as intervenções transformadas em parcerias anônimas de pessoas que vão ao seu encontro. Ou seja, uma parceria ativa de “forças que se desenvolvem por iniciativa própria” (STANGOS, 1981, p.153) até a abdicação do ego em prol dessa parceria.

São vieses que obviamente compõem leituras e questões associativas para a criação do conceito do GRAV, que primou pela interferência, conjugada a experiência do artista que cede o espaço para a criação em fluxos intensos e singulares – a imagem que surge com o movimento ou o movimento cria uma forma no espaço com as variantes inesperadas sob efeito da luz.

Le Parc não se eximiu de suas responsabilidades sobre as guerras do Vietnã e da Argélia. Ele viveu em Paris no auge de maio de 1968, em um momento histórico da França com as participações de intelectuais como Michel Foucault, Simone de Beauvoir, Jean Paul Sartre, Félix Guattari, Gilles Deleuze, entre outros – nas ruas, nas manifestações com os estudantes, exilados, operários e camponeses.

As premiações têm assinaturas importantes contra as ditaduras militares que assolaram a América Latina dos anos de 1960 a 1980. Contudo, ele foi percebendo que o GRAV, depois que conseguiu a consagração, não primou pelas causas necessárias que nunca abandonou.

Esse foi o momento em que Le Parc viu em Gontran Netto (1933-2017) uma parceria que se desdobrou no Grupo de Pintores Antifascistas e no Grupo Denúncia. O alquimista cinético quando precisou ser um Realista para retratar os torturados em Sala Escura da Tortura, o fez desde as fotos às pinturas sem ferir sua opção pela Arte Cinética ou sua essência geométrica e concretista.

Julio Le Parc prefere designar seus trabalhos de “Experiências ou Alquimias” e não, Obras. Suas Alquimias germinam na Arte Contemporânea e na Arte Conceitual, vindas de um processo desde jovem quando uma professora sugeriu para a sua mãe que o matriculasse em uma Escola de Artes.

O jovem argentino de Mendoza mudou para Buenos Aires, onde estudou e trabalhou para se manter. Pouco depois, entrou na Universidade de Artes em um período de grandes reformas do primeiro governo peronista, de 1946 a 1955. Os estudantes interferiram no processo educacional e mesmo sem recursos, chamaram artistas para implementarem uma nova estética no espaço acadêmico, assim como participaram do processo de seleção dos professores e a compor trabalhos com eles.

Lúcio Fontana teve um grande peso na formação de Le Parc como professor e amigo. Lúcio abriu espaços, além da pintura, através do geometrismo, do objeto e das cores. Depois, Le Parc fez experiências com eletricidade, montou e desmontou objetos até adquirir um olhar desde a Arte Concreta à Arte Cinética, a partir do coletivo GRAV.

Quando Le Parc consegui uma bolsa de estudos para se aperfeiçoar em Paris, logo se adaptou as movimentações da França frente às mudanças que reverberaram no início dos anos de 1960. Nessa época ele já havia se tornado um proeminente artista franco-argentino e a obter respeito que lhe valeu inúmeras exposições importantes e a premiação na 33α Bienal de Veneza, se sobrepondo, no auge da Pop Art, a Roy Lichtenstein, em 1966. (Julio Le Parc. In: 100 anos del Museo de la Cárcova, 21 set. 2021)

Vale lembrar que em 2016, Le Parc & Gontran Netto realizaram uma Conversa – do ateliê de Le Parc em Paris para alunos de Artes Visuais do Paraná (1), concomitante, a homenagem da Bienal de Curitiba 2015-2016 ao artista franco-argentino (2). Abaixo, duas intervenções nas alquimias de Le Parc.

(1) Em fevereiro de 2016, Julio Le Parc & Gontran Netto nos deram a honra de uma “Conversa” na UEM – Universidade Estadual de Maringá. A proposta previa a interação dos alunos de Artes Visuais, Arquitetura, Moda, Design, História e Artes Cênicas da UEM. Mas infelizmente não nos foi concedido um espaço para tanto, reduzido para dez pessoas, além dos difíceis recursos tecnológicos adaptados ao ateliê de Julio Le Parc, em Paris (programa NEAD da UEM). Um dia antes da “Conversa”, o estúdio cancelou o nosso encontro, que seria em dezembro de 2015. Remarcamos, por fim, aconteceu em janeiro de 2016. No final, o responsável pelo estúdio “esqueceu de ligar a câmera”.

(2) Bienal Internacional de Curitiba  3/10/2015 a 14/02/2016 no Museu Oscar Niemeyer – Julio Le Parc foi o artista homenageado Bienal Luz do Mundo, curadoria geral de Teixeira Coelho.

Gontran Netto & Julio Le Parc: amizade, parceria artística e política

14 nov

por Gisele Miranda

LE PARC, meu mais fiel e melhor amigo. Ele é o maior inimigo dos meus defeitos e dos meus fantasmas (…) Nós estávamos com a pretensão de poder um dia ver o mundo mudar em benefício dos deserdados. Algumas vezes nós conseguimos alguns resultados e deixamos a nossa marca sobre coisas concretas como o Museu da Palestina, Museu da Nicarágua, Museu Contra o apartheid, Museu Salvador Allende e etc. (GGN, áudio visual, 7 jan. 2005)

O pintor Gontran Guanaes Netto (1933-2017) e o amigo alquímico Julio Le Parc (1928) tiveram uma parceria por quase meio século, de 1970 a 2017. Seus trabalhos são distintos, mas suas cores se encontraram na luta antifascista e anticolonialista.

Fig. 1: Julio Le Parc e Gontran Guanaes Netto, Paris, década de 1970.

De 1970 a 1985, estiveram diariamente em Coletivos de Pintores Antifascitas e em inúmeras viagens para exposições coletivas em outros países: exposições com caráter estético-político. Destaque para as ações de protestos na Bienal de Veneza, em 1972-1973: Fundamos, a convite da Bienal de Veneza, a Brigada Internacional de Pintores Antifascistas. (GGN, manuscrito, 2010) O ano de 1973, foi de consternação pelos golpes militares no Uruguai e em seguida no Chile.

Quando Gontran retornou ao Brasil, em 1985, na abertura democrática brasileira, não houve estremecimento na amizade porque a maturidade foi construída – eles ficaram sete anos distantes  Mas, por que Gontran voltou ao Brasil no auge de sua carreira na França? Voltou “para impor – pela  força de um ato de testemunho” (NEGRI, 2001: 17) O retorno ao Brasil teve a coerência das ações políticas em parceria com Le Parc.

Le Parc saiu de Paris e por um dia que esteve em São  Paulo foi direto para o meu ateliê… Le Parc é um argentino irônico, cético e racional, mas quando se abalava dava lugar a um lado sensível. Eu era mais sensível e intuitivo, mas sempre utilizando argumentos e exemplos concretos… às vezes, a obra se empalidecia  para justificar os dogmas aleatórios, mesmo com toda a capacidade de trabalho. (GGN, áudio visual, 7 jan. 2005)

O reeencontro se deu em 1992, depois eles não se permitiram mais o distanciamento. Mantiveram-se em contato através de ligações e algumas viagens entre o Brasil e a França. Também, muitas reminiscências ratificando o laço forte dessa amizade.  Em 2002, o amigo argentino dedicou-lhe o poema Cores:

As cores da Esperança

Quando o ser humano vem a ser cores, Quando a cor vem a ser forma humana, Quando o ser humano este ligado à terra,

Quando o camponês da terra faz brotar seus frutos, Quando estes frutos são usurpados,

Quando esta usurpação gera a miséria, Quando esta miséria gera revolta, Quando esta revolta é reprimida,

Quando esta repressão obedece a uma ordem, Quando esta ordem é a ordem dos outros,

Quando estes outros acreditam ser proprietários do mundo, Quando este mundo se mundializa em detrimentos da maioria,

Quando esta maioria, eles os camponeses, vem a ser os ‘Damnés de la Terre’.

Quando Netto (Le Parc) com sua caixa de cores está presente,

Quando eles ‘ Les Damnés de la Terre’, estes camponeses (desaparecidos) brasileiros (argentinos), mesmo na pior situação, carregam neles, extremamente e internamente suas cores,

Quando suas cores são aquelas da dignidade, Quando suas cores são aquelas da luta, Quando suas cores são aquelas da esperança,

Quando suas cores são aquelas da alegria que não se deve apagar, Quando na caixa de cores de Netto (Le Parc) passa a ser ativa,

Quando suas cores passam a ser militantes, mas autônomos, elas fazem sua revolta, Quando esta revolta em cores vai ao encontro da justa revolta ‘ Damnés’,

Quando a mesma não passa pelo miserabilismo, nem pela obscura e sombria derrota, nem pela prostração e aniquilamento, mas sim

Pelo desejo e o direito à vida – As cores estão presentes,

Quando estas cores estão presentes no olhar de Netto (Le Parc), no seu coração, na sua primeira sensibilidade, na sua cabeça

Que põem em ordem, as cores passam a ser forma e fé no homem,

Quando tudo que está ancorado no mais profundo de seus ‘ Domnés de la Terre’ e no Netto- Le Parc, Pintor – homem, é evidente que venha a ser figuração,

Quando estão pela intermediação de Netto-Le Parc, com esta forte presença – cor, nós não podemos nos esquivar e nós somos também fortemente envolvidos,

Quando esperança não desaparece, quando a esperança cresce os quadros de Netto-Le Parc permanecem.

Ao ler o poema em voz alta, os olhos de Gontran que já eram grandes ficaram ainda maiores. Riu e lacrimejou ao rememorar o amigo que o chamava de “brésilien, mangeur de banane”. Em seguida lembrou de outra intervenção de Le Parc ao pedir-lhe que escrevesse um texto para uma publicação e respondendo ao seu próprio pedido com a seguinte ironia:

Se você estiver muito velho, sem condições de escrever eu sugiro o texto que eu fiz sobre você {O poema Cores}. A gente troca onde está escrito ‘para Netto’, você coloca ‘para Le Parc’.

Fig. 2: Gontran Guanaes Netto. Os donos da terra (homenagem a Julio Le Parc) Série de doze pinturas, 20022011. Óleo sobre tela, 100 x 100 cm.
Fig. 3: Julio Le Parc. Série 14-5E. Acrylico sobre lienzo 171 x 171 Cm, 1970.

Veja Gisele, pelo texto e a significação do texto é um dos maiores elogios que eu já tive, porque mostra que o texto serve parar mim e para ele.” (GGN, áudio visual, 7 jan. 2005)

Fig. 4: Julio Le Parc e Gontran Guanaes Netto. Ao fundo uma serigrafia de Le Parc baseada em uma pintura de Gontran Netto. França, 2014.

De 1985 a 2010,  Gontran viveu no Brasil. Às vesperas de seus 78 anos ele decidiu voltar a França, também para estar ao lado do amigo Le Parc. Pouco antes de sua partida escreveu “autobiografia de um artista bem sucedido”:

A proximidade dos meus 80 anos e na circunstância do meu retorno a França, sinto- me obrigado a remover a Casa da Memória (*) para outro local. Foi necessário dar uma nova ordem a apresentação dos quadros. Eles marcaram tomadas de posições sobre acontecimentos diversos, tais como: o neocolonialismo 1970-1973, Chile, Vietnã, imperialismo, Palestina, racismo, etc. (…) Ao mesmo tempo me vejo retornando a França com entusiasmo redobrado e com a pretensão de continuar oferecendo novas perspectivas e enriquecer os mesmos objetivos. (GGN, São Paulo, 15 de outubro de 2010)

Em 2017, aos 84 anos. Gontran Guanaes Netto faleceu em Cachan, França.

(*) Gontran abriu a sua Casa-Ateliê aos jovens estudantes de 2007 a 2010, transformando-a em Casa da Memória Coletiva, entre 2007-2008.

O TECER dos 13 anos do Blog TECITURAS (2010-2023)

30 out

por Gisele Miranda, Lia Mirror & Laila Lizmann

O Blog Tecituras nasceu nas paredes de um quarto – gestado e parido. As palavras foram esculpidas, ora na pena, ora com as unhas. O caos, a dor e a “solidão do porvir de poucos” atentou que a “consciência sobrevive a qualquer circunstância”. As incisivas palavras são do artista Gontran Guanaes Netto (1933-2017), amigo, professor e tutor.

Gontran Netto nos deu a honra de sua colaboração no Tecituras com suas obras e suas reflexões, seus escritos e interferências.

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A homenagem dos 13 anos do Tecituras vem de um conteúdo Histórico, Artístico, Crítico e Político. De conteúdo imaterial, inquietações do pensamento à escrita com o objetivo de compartilhar conhecimentos, experienciar e zelar pelos bens culturais, com colaboradores – com ou sem vínculos acadêmicos e com uma bagagem de textos não perecíveis ao tempo, atualizados, conscienciosos de sua necessidade, por isso, nossa justa homenagem a Gontran Guanaes Netto. Há inúmeros textos sobre sua arte, sua luta, além de tutelar um pequeno espaço tecido ao longo desses anos com pesquisas sobre as obras de Antonio Peticov, Emmanuel Nery, Paschoal Carlos Magno, entre outros temas.

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O conteúdo artístico faz uma grande diferença. O conteúdo crítico é uma filtro necessário frente a educação da exclusão. Dessa homenagem tecemos reverência ao ofício dos professores em situações de risco e pobreza.

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Nosso Brasil tão diverso, nascido de um histórico de pura violência, dos séculos de escravidão, da exclusão, dos preconceitos. Esses séculos não foram sanados, tão pouco, os 21 anos de violência da ditadura civil e militar no Brasil, porque não há consciência histórica.
As ditaduras devastaram toda a América Latina, torturaram, violentaram, reprimiram, subornaram, difamaram e mataram. Toda essa herança resiste cada vez mais, estratificada nos professores, na moral da violência e da submissão material, na baixa remuneração, na ausência dos livros, das leituras, do tempo, das escritas à “missão impossível”.
Entre a teoria, o discurso frio e confortável há o extremo da prática nada confortável. Entre as fases antagônicas existem mais falas sujas, oportunas e arrogantes. Sem dúvida, a figura opressora tem cúmplices entre os próprios oprimidos. (1)

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Entre os traumatizados há sobreviventes, independente da indexação, do conforto, da assepsia, da insensibilidade, do apodrecimento, dos muros onde os discursos, principalmente econômicos falam mais alto, não por acidente, mas por natureza.

(1)  BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo Vol 2: A Experiência Vivida, Difusão Européia do Livro, 1967. “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.

(2)  DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 221.