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Gontran Netto & Julio Le Parc: amizade, parceria artística e política

14 nov

por Gisele Miranda

LE PARC, meu mais fiel e melhor amigo. Ele é o maior inimigo dos meus defeitos e dos meus fantasmas (…) Nós estávamos com a pretensão de poder um dia ver o mundo mudar em benefício dos deserdados. Algumas vezes nós conseguimos alguns resultados e deixamos a nossa marca sobre coisas concretas como o Museu da Palestina, Museu da Nicarágua, Museu Contra o apartheid, Museu Salvador Allende e etc. (GGN, áudio visual, 7 jan. 2005)

O pintor Gontran Guanaes Netto (1933-2017) e o amigo alquímico Julio Le Parc (1928) tiveram uma parceria por quase meio século, de 1970 a 2017. Seus trabalhos são distintos, mas suas cores se encontraram na luta antifascista e anticolonialista.

Fig. 1: Julio Le Parc e Gontran Guanaes Netto, Paris, década de 1970.

De 1970 a 1985, estiveram diariamente em Coletivos de Pintores Antifascitas e em inúmeras viagens para exposições coletivas em outros países: exposições com caráter estético-político. Destaque para as ações de protestos na Bienal de Veneza, em 1972-1973: Fundamos, a convite da Bienal de Veneza, a Brigada Internacional de Pintores Antifascistas. (GGN, manuscrito, 2010) O ano de 1973, foi de consternação pelos golpes militares no Uruguai e em seguida no Chile.

Quando Gontran retornou ao Brasil, em 1985, na abertura democrática brasileira, não houve estremecimento na amizade porque a maturidade foi construída – eles ficaram sete anos distantes  Mas, por que Gontran voltou ao Brasil no auge de sua carreira na França? Voltou “para impor – pela  força de um ato de testemunho” (NEGRI, 2001: 17) O retorno ao Brasil teve a coerência das ações políticas em parceria com Le Parc.

Le Parc saiu de Paris e por um dia que esteve em São  Paulo foi direto para o meu ateliê… Le Parc é um argentino irônico, cético e racional, mas quando se abalava dava lugar a um lado sensível. Eu era mais sensível e intuitivo, mas sempre utilizando argumentos e exemplos concretos… às vezes, a obra se empalidecia  para justificar os dogmas aleatórios, mesmo com toda a capacidade de trabalho. (GGN, áudio visual, 7 jan. 2005)

O reeencontro se deu em 1992, depois eles não se permitiram mais o distanciamento. Mantiveram-se em contato através de ligações e algumas viagens entre o Brasil e a França. Também, muitas reminiscências ratificando o laço forte dessa amizade.  Em 2002, o amigo argentino dedicou-lhe o poema Cores:

As cores da Esperança

Quando o ser humano vem a ser cores, Quando a cor vem a ser forma humana, Quando o ser humano este ligado à terra,

Quando o camponês da terra faz brotar seus frutos, Quando estes frutos são usurpados,

Quando esta usurpação gera a miséria, Quando esta miséria gera revolta, Quando esta revolta é reprimida,

Quando esta repressão obedece a uma ordem, Quando esta ordem é a ordem dos outros,

Quando estes outros acreditam ser proprietários do mundo, Quando este mundo se mundializa em detrimentos da maioria,

Quando esta maioria, eles os camponeses, vem a ser os ‘Damnés de la Terre’.

Quando Netto (Le Parc) com sua caixa de cores está presente,

Quando eles ‘ Les Damnés de la Terre’, estes camponeses (desaparecidos) brasileiros (argentinos), mesmo na pior situação, carregam neles, extremamente e internamente suas cores,

Quando suas cores são aquelas da dignidade, Quando suas cores são aquelas da luta, Quando suas cores são aquelas da esperança,

Quando suas cores são aquelas da alegria que não se deve apagar, Quando na caixa de cores de Netto (Le Parc) passa a ser ativa,

Quando suas cores passam a ser militantes, mas autônomos, elas fazem sua revolta, Quando esta revolta em cores vai ao encontro da justa revolta ‘ Damnés’,

Quando a mesma não passa pelo miserabilismo, nem pela obscura e sombria derrota, nem pela prostração e aniquilamento, mas sim

Pelo desejo e o direito à vida – As cores estão presentes,

Quando estas cores estão presentes no olhar de Netto (Le Parc), no seu coração, na sua primeira sensibilidade, na sua cabeça

Que põem em ordem, as cores passam a ser forma e fé no homem,

Quando tudo que está ancorado no mais profundo de seus ‘ Domnés de la Terre’ e no Netto- Le Parc, Pintor – homem, é evidente que venha a ser figuração,

Quando estão pela intermediação de Netto-Le Parc, com esta forte presença – cor, nós não podemos nos esquivar e nós somos também fortemente envolvidos,

Quando esperança não desaparece, quando a esperança cresce os quadros de Netto-Le Parc permanecem.

Ao ler o poema em voz alta, os olhos de Gontran que já eram grandes ficaram ainda maiores. Riu e lacrimejou ao rememorar o amigo que o chamava de “brésilien, mangeur de banane”. Em seguida lembrou de outra intervenção de Le Parc ao pedir-lhe que escrevesse um texto para uma publicação e respondendo ao seu próprio pedido com a seguinte ironia:

Se você estiver muito velho, sem condições de escrever eu sugiro o texto que eu fiz sobre você {O poema Cores}. A gente troca onde está escrito ‘para Netto’, você coloca ‘para Le Parc’.

Fig. 2: Gontran Guanaes Netto. Os donos da terra (homenagem a Julio Le Parc) Série de doze pinturas, 20022011. Óleo sobre tela, 100 x 100 cm.
Fig. 3: Julio Le Parc. Série 14-5E. Acrylico sobre lienzo 171 x 171 Cm, 1970.

Veja Gisele, pelo texto e a significação do texto é um dos maiores elogios que eu já tive, porque mostra que o texto serve parar mim e para ele.” (GGN, áudio visual, 7 jan. 2005)

Fig. 4: Julio Le Parc e Gontran Guanaes Netto. Ao fundo uma serigrafia de Le Parc baseada em uma pintura de Gontran Netto. França, 2014.

De 1985 a 2010,  Gontran viveu no Brasil. Às vesperas de seus 78 anos ele decidiu voltar a França, também para estar ao lado do amigo Le Parc. Pouco antes de sua partida escreveu “autobiografia de um artista bem sucedido”:

A proximidade dos meus 80 anos e na circunstância do meu retorno a França, sinto- me obrigado a remover a Casa da Memória (*) para outro local. Foi necessário dar uma nova ordem a apresentação dos quadros. Eles marcaram tomadas de posições sobre acontecimentos diversos, tais como: o neocolonialismo 1970-1973, Chile, Vietnã, imperialismo, Palestina, racismo, etc. (…) Ao mesmo tempo me vejo retornando a França com entusiasmo redobrado e com a pretensão de continuar oferecendo novas perspectivas e enriquecer os mesmos objetivos. (GGN, São Paulo, 15 de outubro de 2010)

Em 2017, aos 84 anos. Gontran Guanaes Netto faleceu em Cachan, França.

(*) Gontran abriu a sua Casa-Ateliê aos jovens estudantes de 2007 a 2010, transformando-a em Casa da Memória Coletiva, entre 2007-2008.