Por Gisele Miranda
Toda natureza produz seus monstros… esquece-se que uma anomalia é o fato em busca de interpretação. Paul Zumthor, 1993, p. 17.
Paul Zumthor em A Letra e a Voz (1)
Zumthor era poeta e medievalista e esteve no Brasil, pela primeira vez, em 1977. Ele ficou fascinado pela Literatura de Cordel como exemplo de que as tradições garantem continuidades.
O autor absorveu a história da música, teatro e pintura tendo como base a instauração dos princípios da literatura medieval através da voz e da performance.
Zumthor foi contra a discriminação dicotômica do popular/erudito, por isso foi extremamente cauteloso ao uso dos termos. Por exemplo: “popular” utilizado entre aspas e deveras atento às suas diferentes aplicações, principalmente, exaltando a pontuação poética da voz.
Com Bakhtin, Zumthor se aproximou via alegoria do Realismo Grotesco (2) presente nos trabalhos artísticos de Bosch, Goya, entre outros.
Embora o estudo da oralidade tenha se dado tardiamente (década de 1950), a oralidade estave ocultada e recalcada em nosso inconsciente cultural e escravizados pelas técnicas escriturais e pela ideologia que elas secretam. (3) É justamente nesse momento que surge a ideia de oposição do “popular” e “erudito”, pois a literatura erudita marca o liame do que é admissível deixando de lado o inadmissível e o conjecturado como folclore ou como ausência de escritura.
O livro A Letra e a Voz fala da teatralidade do discurso, da poesia existente na textualidade. Distinguindo as diferenças da tradição oral (duração) e da transmissão oral (movimento performático), assim como suas constituições temporais.
A performance, segundo Zumthor, equilibra a comunicação com a recepção. Dessa forma, o autor se organizou através de marcos cronológicos para a realização da poética da voz exemplificado o período correspondente de seus estudos como medievalista. Ele elaborou seu livro de maneira descontínua valsando por várias áreas.
Vertentes de Geneviève Bollème
É interessante compor O Povo por escrito de Bollème à discussão de Zumthor. Geneviève enfoca o julgamento do termo “popular”. Essa investigação se deu através dos estudos de linguas e absorções do termo – de Platão, Sartre, Foucault… concentrando em Michelet, Luxan e Simone Weil. Segundo Le Goff, que prefaciou O Povo por Escrito, Bollème conseguiu tecer sua investigação no campo da reflexão e da ação.
O uso do termo “popular” remete a apropriação política que em geral é utiliza-se como modo indireto para falar do povo sem nomeá-lo. Tal é o prisma de Michelet, ou seja, o povo como memória onde coabita a consciência política, ou como Luxan que situa sua escrita como prática política (arma).
Pela via de Simone Weil – através da infelicidade da condição operária –, a filósofa colocou-se em laboratório no vivenciar de uma operária até esbarrar na solidão, em um monólogo que amargurado em seus limites.
Assim, ela compreendeu que o povo não se define, nem se pensa, nem se fala. Pode-se apreendê-lo em sua ação ou haverá pelo menos uma representação dele? O povo é a própria revolução, pois ele se apresenta como poder de participação e de integração, no momento em que a comunidade unânime subverte qualquer hierarquia e qualquer ordem estabelecida. (4)
(*) Sobre a imagem: Goya: “O sono da razão produz monstros”, por Sergio Paulo Rouanet: “A coruja tirânica que quer impor sua vontade ao artista é a razão narcísica do hiper-racionalismo. Os morcegos são as larvas e os fantasmas do irracionalismo. Dois animais deficitários, truncados. O morcego tem uma audição aguda, mas é cego. A coruja enxerga de noite, mas não de dia. Falta um terceiro animal na zoologia de Goya, mais completo. Não, não falta. Ele está no canto direito, enorme, olhando fixamente o espectador. É um gato. O gato ouve tudo e tem uma visão diurna e noturna. Sabe dormir e sabe estar acordado. E sabe relacionar-se com o Outro, sem arrogância, ao contrário do seu primo selvagem, o tigre, e sem servilismo, ao contrário do seu inimigo domestico, o cão. É a perfeita alegoria da razão dialógica, da razão que despertou do seu sonho, é atenta a todos os sons e todas as imagens, tanto do mundo de vigília como do mundo onírico, e conversa democraticamente com todas as figuras do Outro, sem insolência e sem humildade”. V. Tb. http://bit.ly/bXZ9Qa
Referências:
BAKHTINE, Mickhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, Editora da Universidade de Brasília, 1993
BOLLÈME, Geneviève. O povo por escrito. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em Cordel: o passo das águas mortas. São Paulo: Hucitec, 1993.
ROUANET, Sergio Paulo. A Deusa Razão. In: NOVAES, Adauto (Org.) A Crise da Razão. São Paulo: Companhia das Letras; Brasília, DF: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996, pp. 298-299)
ZUMTHOR, Paul. A Letra e voz: a “literatura” medieval. Tradução Amálio Pinheiro & Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução Jerusa Pires Ferreira; Maria Lúcia Diniz Pochat; Maria Inês de Almeida. São Paulo: Hucitec, 1997.
(1) Zumthor nasceu em Genebra, 1915 e faleceu em Montreal, 1995. O livro A Letra e a Voz foi escrito entre 1982 e 1985. Três situações de cultura na Oralidade: primária e imediata (sem contato com escritura); oral mista (coexiste com a escritura – defasada –dos séculos V ao XV, a oralidade estava mais para a mista, conforme época, regiões, classes sociais e indivíduos); oral segundo (com base na escritura – valores da voz no uso do imaginário – ou seja, cultura letrada.
(2) Realismo Grotesco: “… sistema de imagens da cultura popular cômica … o cósmico, o social e o corporal… numa totalidade viva. IN: A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, 1993, p. 17.
(3) Zumthor, 1993, p. 8.
(4) Bollème, 1988, p. 131; 139; 140 e 152.
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