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Série Releituras & Breves Comentários VI: Paul Zumthor e as vertentes de Geneviève Bollème

7 abr

Por Gisele Miranda

Toda natureza produz seus monstros… esquece-se que uma anomalia é o fato em busca de  interpretação. Paul Zumthor, 1993, p. 17.

Paul Zumthor em A Letra e a Voz (1)

Zumthor era poeta e medievalista e esteve no Brasil, pela primeira vez, em 1977. Ele ficou fascinado pela Literatura de Cordel como exemplo de que as tradições garantem continuidades.

O autor absorveu a história da música, teatro e pintura tendo como base a instauração dos princípios da literatura medieval através da voz e da performance.

Zumthor foi contra a discriminação dicotômica do popular/erudito, por isso foi extremamente cauteloso ao uso dos termos. Por exemplo: “popular” utilizado entre aspas e deveras atento às suas diferentes aplicações, principalmente, exaltando a pontuação poética da voz.

Com Bakhtin, Zumthor se aproximou via alegoria do Realismo Grotesco (2) presente nos trabalhos artísticos de Bosch, Goya, entre outros.

GOYA, Two old people eating soup, 1820-21

Embora o estudo da oralidade tenha se dado tardiamente (década de 1950), a oralidade estave  ocultada e recalcada em nosso inconsciente cultural e escravizados pelas técnicas escriturais e pela ideologia que elas secretam. (3) É justamente nesse momento que surge a ideia de oposição do “popular” e “erudito”, pois a literatura erudita marca o liame do que é admissível deixando de lado o inadmissível e o conjecturado como folclore ou como ausência de escritura.

O livro A Letra e a Voz fala da teatralidade do discurso, da poesia existente na textualidade. Distinguindo as diferenças da tradição oral (duração) e da transmissão oral (movimento performático), assim como suas constituições temporais.

A performance, segundo Zumthor, equilibra a comunicação com a recepção. Dessa forma, o autor se organizou através de marcos cronológicos para a realização da poética da voz exemplificado o período correspondente de seus estudos como medievalista. Ele elaborou seu livro de maneira descontínua valsando por várias áreas.

Vertentes de Geneviève Bollème

É interessante compor O Povo por escrito de Bollème à discussão de Zumthor. Geneviève enfoca o julgamento do termo “popular”. Essa investigação se deu através dos estudos de linguas e absorções do termo – de Platão, Sartre, Foucault… concentrando em Michelet, Luxan e Simone Weil. Segundo Le Goff, que prefaciou O Povo por Escrito, Bollème conseguiu tecer sua investigação no campo da reflexão e da ação.

O uso do termo “popular” remete a apropriação política que em geral é utiliza-se como modo indireto para falar do povo sem nomeá-lo. Tal é o prisma de Michelet, ou seja, o povo como memória onde coabita a consciência política, ou como Luxan que situa sua escrita como prática política (arma).

Pela via de Simone Weil – através da infelicidade da condição operária –, a filósofa colocou-se em laboratório no vivenciar de uma operária até esbarrar na solidão, em um monólogo que amargurado em seus limites.

Assim, ela compreendeu que o povo não se define, nem se pensa, nem se fala. Pode-se apreendê-lo em sua ação ou haverá pelo menos uma representação dele? O povo é a própria revolução, pois ele se apresenta como poder de participação e de integração, no momento em que a comunidade unânime subverte qualquer hierarquia e qualquer ordem estabelecida. (4)

GOYA, O sono da razão produz monstros, 1797-8.

(*) Sobre a imagem: Goya: “O sono da razão produz monstros”, por Sergio Paulo Rouanet:  “A coruja tirânica que quer impor sua vontade ao artista é a razão narcísica do hiper-racionalismo. Os morcegos são as larvas e os fantasmas do irracionalismo. Dois animais deficitários, truncados. O morcego tem uma audição aguda, mas é cego. A coruja enxerga de noite, mas não de dia. Falta um terceiro animal na zoologia de Goya, mais completo. Não, não falta. Ele está no canto direito, enorme, olhando fixamente o espectador. É um gato. O gato ouve tudo e tem uma visão diurna e noturna. Sabe dormir e sabe estar acordado. E sabe relacionar-se com o Outro, sem arrogância, ao contrário do seu primo selvagem, o tigre, e sem servilismo, ao contrário do seu inimigo domestico, o cão. É a perfeita alegoria da razão dialógica, da razão que despertou do seu sonho, é atenta a todos os sons e todas as imagens, tanto do mundo de vigília como do mundo onírico, e conversa democraticamente com todas as figuras do Outro, sem insolência e sem humildade”. V. Tb. http://bit.ly/bXZ9Qa

Referências:

BAKHTINE, Mickhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, Editora da Universidade de Brasília, 1993

BOLLÈME, Geneviève. O povo por escrito. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em Cordel: o passo das águas mortas. São Paulo: Hucitec, 1993.

ROUANET, Sergio Paulo. A Deusa Razão. In: NOVAES, Adauto (Org.) A Crise da Razão. São Paulo: Companhia das Letras; Brasília, DF: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996, pp. 298-299)

ZUMTHOR, Paul. A Letra e voz: a “literatura” medieval. Tradução Amálio Pinheiro & Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução Jerusa Pires Ferreira; Maria Lúcia Diniz Pochat; Maria Inês de Almeida. São Paulo: Hucitec, 1997.


(1) Zumthor nasceu em Genebra, 1915 e faleceu em  Montreal, 1995.  O livro A Letra e a Voz foi escrito entre 1982 e 1985. Três situações de cultura  na Oralidade: primária e imediata (sem contato com escritura); oral mista (coexiste com a escritura – defasada –dos séculos V ao XV, a oralidade estava mais para a mista, conforme época, regiões, classes sociais e indivíduos); oral segundo (com base na escritura – valores da voz no uso do imaginário – ou seja, cultura letrada.

(2) Realismo Grotesco: “… sistema de imagens da cultura popular cômica … o cósmico, o social e o corporal… numa totalidade viva. IN: A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, 1993, p. 17.

(3) Zumthor, 1993, p. 8.

(4) Bollème, 1988, p. 131; 139; 140 e 152.

Série Releituras e Breves Comentários V: Os cometas Philadelpho Menezes & Renato Cohen

9 jan

por Gisèle Miranda

Eu os conheci no auge de suas atividades acadêmicas e artísticas e num estalo desapareceram. Ambos faleceram cedo interrompendo um futuro promissor.

A partir dos diálogos que tive com eles fui confrontando posições com relação as as minhas pesquisas finalizadas no departamento de História da PUC/SP.

Entre passado e presente vivenciei a sensação de futuro. A vanguarda desses profissionais não me saciou com respostas pontuais, mas proliferaram discussões.

Leonilson (Fortaleza, CE, 1957- São Paulo, SP, 1993) Com o Anjo da Guarda, c. 1991. Aquarela e caneta permanente sobre papel 9 x 6,2 cm. Coleção MAM/SP)

Philadelpho Menezes (São Paulo, SP- 1960- São Paulo, SP, 2000)

A primeira leitura que fiz do Phila (como era carinhosamente chamado) foi: A crise do passado. O que invariavelmente estimulou em mim, uma crise sem fim. Como lidar com essa crise sendo eu uma historiadora? Não ignorando a fugacidade e a transitoriedade do presente que propõe sempre a modificação do passado recente – algumas vezes recuperando um passado remoto… (Menezes, 1994, p. 9).

E, em se tratando das artes (em geral) não bastava abarcar os conceitos, então, fui avançando e escavando os instantes; fui percebendo que havia um poço sem fundo e que a matéria examinada é instável e não se revela por inteiro…; que muitas vezes há inadequação do conceito diante da obra… pois, há sentidos ocultos, inimaginados, que escapam das camisas-de-força, denunciam a estreiteza dos sistemas (COLI, 1993, p. 51 In: o ensino das artes nas universidades).

Para entender o que Jorge Coli escreveu eu precisei romper e experienciar. Para estudar as vanguardas artísticas fui de encontro ao muro, escavei até sangrarem meus dedos e cheguei à poesia sonora de Philadelpho (elaboração fonética, vocal, acústica, eletroacústica das poéticas de experimentação. (1992, p. 9). Arte subverte e intervém.

Em Signos plurais organizado por Philadelpho e com textos de diversos intelectuais ligados às artes, questões como globalização, novas tecnologias geraram possibilidades sobre o pensar artístico contemporâneo, contexto marcado pela pluralização/fragmentação. Assim como os modos de consumo são inventados assim como as próprias tradições culturais são frutos de processos de fabricação cultural (JAGUARIBE, 1997, p. 75 In: Signos plurais).

Aos termos inventados e fabricação pode-se discorrer pelos empréstimos e filtros discutidos pelo historiador Peter Burke. (1997, p. 5) Esses empréstimos e filtros se adéquam ao denominado cosmopolismo cultural, ou seja, uma abertura crítica à diversidade do mundo frente às teorias e aos mecanismos de estandartização e homogeneização cultural, e face ao entrincheiramento etnocêntrico de grupos e nações… tecendo pontos de diálogos e estranhamentos. (JAGUARIBE, 1997, p. 81)

Um bom exemplo do diálogo e estranhamento é ouvirmos a sobreposição de um trecho da Sinfonia 40 de Mozart com o canto dos pigmeus africanos, fruto do trabalho poético e performático; registrado em CD e livro pelo saudoso professor, mescla de médico e monstro das artes Viva, Philadelpho Menezes!

Renato Cohen (Porto Alegre, RS, 1953 – São Paulo, SP, 2003)

Acompanhei o trabalho de Renato Cohen na Cia. Teatral Ueinzz, coordenado pelo filósofo e ator Peter Pál Pelbart, na época, dirigido por Renato Cohen e Sergio Penna; os atores são, em grande parte, pacientes do hospital dia A Casa.

Renato é escreveu Work in Progress sobre a cena contemporânea, o conceito in progresss, originário das artes plásticas, em action painting às construções transitórias nas assemblagens, collagens.

A combinação mirabolante Cia. Teatral Ueinzz e Work in Progress esteve permeado pelo risco físico e psíquico, vivificando o momento, matéria existencial dos participantes fluiu numa transposição de linguagens, de estranhamento cênico e análise de recepção. (Cohen, 1998, p. 18; 31)

O guardião da vanguarda se foi? Não! Viva, Renato Cohen!

(*) A Série Releituras é uma proposta insurgente, que visa uma escrita a partir de dois autores ou dois livros em releituras e breves comentários.

Bibliografia:

COHEN, Renato. Wok in progress na cena contemporânea: criação, encenação e recepção. São Paulo: Perspectiva, 1998.

COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perspectiva; Editora da Universidade de São Paulo, 1989.

MENEZES, Philadelpho. A crise do passado: modernidade, vanguarda, metamodernidade. São Paulo: Experimento, 1994.

MENEZES, Philadelpho (Org.) Signos plurais: mídia, arte, cotidiano na globalização. São Paulo: Experimento, 1997.

MENEZES, Philadelpho (Org.) Poesia sonora: poéticas experimentais da voz no século XX. São Paulo: EDUC, 1992.

Outras sugestões:

ARTE e tecnologia (Catálogo) São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1997. (Exposição e Simpósio Arte e Tecnologia ocorrida no ICI, de 23 de setembro a 26 de outubro de 1997).

BARBOSA, Ana Mae T. B. et al. O ensino das artes nas universidades. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; CNPq, 1993.

BURKE, Peter. Inevitáveis empréstimos culturais. Folha de S. Paulo, São Paulo, 27 de julho de 1997. Cad. Mais!

COELHO, Sergio Salvia. Renato Cohen foi o guardião da vanguarda. Folha de São Paulo, São Paulo, 21 de outubro de 2003. Ilustrada E-2.

MENEZES, Philadelpho et al. Poesia hipermídia interativa (CD). São Paulo: Edição Universidade Presbiteriana Mackenzie, Estúdio de poesia experimental da PUC/SP, FAPESP, 1998.

MENEZES, Philadelpho et al. Poesia sonora hoje (CD). São Paulo: Estúdio de poesia experimental da PUC/SP – 002, 1998.

MENEZES, Philadelpho et al. Poesia Sonora: do fonetismo às poéticas contemporâneas da voz (CD). São Paulo: Estúdio de poesia experimental da PUC/SP – 001, 1996.

ROMA Antiga: arqueologia musical experimental (Performance). Direção Gisèle Miranda. FESB, 1998.

SYNAULIAMusic from ancient Rome (CD). Italy: Amiata Records, 1996, Vol. I.

1 “Philadelpho Menezes (São Paulo SP, em 1960 – São Paulo SP 2000) publicou seu primeiro livro de poemas: “4 achados construídos” (Edições Aicás, 820, SP), em 1980. Depois seguiram-se: “Poemas 1980-1982” (1984), e “Demolições (ou poemas aritméticos)”, em 1988. Foi autor do livro de teoria “Poética e Visualidade – Uma Trajetória da Poesia Brasileira Contemporânea” (Ed. UNICAMP, Campinas 1991) e organizador de “Poesia Sonora – Poéticas Experimentais da Voz do Século XX” (EDUC, SP, 1992). Organizou, entre outras mostras, a exposição “Poesia Intersignos” São Paulo” (1988). Foi professor do programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC/São Paulo, tendo realizado a pesquisa de seu doutorado junto à universidade de Bolonha (1990). Sua tese de doutorado foi editada com o título: “A Crise do Passado: Modernidade, Pós-Modernidade, Metamodernidade”. Philadelpho Menezes faleceu em um acidente automobilístico.” Ref. coletiva Web)

“Renato Cohen (Porto Alegre RS 1956 – São Paulo SP 2003). Diretor, performer e teórico. Pesquisador de arte e tecnologia, atuou em São Paulo desde meados dos anos 80, um dos diretores mais conectados às inovações multimídias e performática. Após realizar mestrado e doutorado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP, com temas associados às técnicas da performance, Renato Cohen torna-se professor da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, respeitado como um especialista em tais domínios. Entre vários trabalhos, em 1997, avançando na pesquisa sobre as vanguardas históricas, cria Máquina Futurista, uma performance sobre arte e tecnologia, que integra a Mostra de Arte e Tecnologia do Itaú Cultural. O grupo de Renato Cohen torna-se um dos primeiros grupos brasileiros a realizar performances – em tempo real – para audiência na rede. Na mesma ocasião, com pacientes psiquiátricos, encena Ueinzz, Viagem à Babel, experiência limite com não-atores.” (Ref. Coletiva Web)

2 “A Cia Teatral Ueinzz é composta por pacientes e usuários de serviços de saúde mental, terapeutas, atores profissionais, estagiários de teatro ou performance, compositores e filósofos, diretores de teatro consagrados e vidas por um triz. Fundada em 1997 no interior do Hospital-Dia “A Casa” em São Paulo, em 2002, se desvinculou por inteiro do contexto hospitalar.”

** As atividades da Cia Teatral Ueinzz na 29ª Bienal: http://ht.ly/2Uwq0

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