por Gisele Miranda
O tema da 31ª Bienal de São Paulo (2014-2015) “Como (pegar, nomear, viver, pensar…) coisas que não existem” – com os verbos no infinitivo e com reticências “ é uma invocação poética do potencial da arte e de sua capacidade de agir e intervir em locais e comunidades onde ela se manifesta”. Então, como existir no silêncio, no tropeço, nas camuflagens da ignorância, no esquecimento?
O escocês Charles Esche assinou uma curadoria que não agradou muito ao público brasileiro ao propor: pensar… nomear, imaginar, viver, lutar, recordar, conhecer, refletir. Houve associação crítica com o Dadaísmo (1916) sobre a estética da Bienal, mas, em vista que a história não se repete, diria que a inspiração Dadaísta partiu do confronto, outrora, a arte questionando valores de uma burguesia fascista e em guerra, hoje, arte, memória e história com uma classe média (brasileira), digna de ser nomeada como “uma abominação política, porque é fascista, é uma abominação ética porque é violenta, e é uma abominação cognitiva porque é ignorante.” (Marilena Chauí, 2013. Cult, p.10)
O Brasil da classe média ataca a mulher de maneira machista e misógina e pede intervenção militar quando desconhece a violência o que resulta na Educação com as cenas de horror de “29 de abril de 2015”. Os professores, a grande maioria professoras, em manifestação pacífica foram alvos de policiais, balas e bombas. É claro que o passado ignorado tornou-se um monstro em diferentes esferas numa catarse de escombros.
29 de abril de 2015 no Centro Cívico, Curitiba, Paraná, Brasil.
Há questões que precisam ser nomeadas a partir de uma discussão sobre o passado. O que Esche mostrou na 31ª Bienal foi o passo da virada contemporânea em diálogo com o passado ignorado seguido do ” 29 de abril de 2015″.
Juan Carlos Romero, Violência, 1973-1977 (impressão sobre papel)
Palmas para Esche por esse elo tecido pela história e pelas memórias coletivas entre a 1ª Bienal de Veneza (1895) à 1ª Bienal de São Paulo (1951), em suas edições instigantes e necessárias.
Concomitante a Bienal de Esche, a 56ª Bienal de Veneza, sob curadoria do nigeriano Okwui Enwezor (1963- 2019), tematizou “Todos os futuros do mundo”, sobre a desigualdade de oportunidades. Enwezor foi o primeiro negro a assumir a Bienal de Veneza. Cabe lembrar que a Nigéria, recentemente, criminalizou a “mutilação genital feminina”, prática que segundo a UNICEF atingiu 125 milhões de meninas em quase 30 países do continente africano.
Alguns temas e obras discutidos na 31ª Bienal
AfroUFO (2014), de Tiago Borges e Yonamine. Um óvni de um futuro incerto que pousou no Brasil todo pichado ou do “pixo”. O contato estético e a intervenção no espaço interno nos reporta a uma “história colonial comum”. Nossa relação vital com o continente Africano sob séculos de escravidão à uma liberdade que contempla o discurso sobre a redução da maioridade penal e o perfil das super lotações nos presídios.
Éder Oliveira com suas pinturas enormes de “jovens delinquentes” ou apenas garotos, menores de idade que estão à margem da sociedade. O perfil desses jovens tem muito da nossa história de séculos de violência e de abandono “caboclos com traços de índios e negros” (Guia 31ª Bienal, p. 147). Aliás, a temática violência aparece em um todo da Bienal, mortes prematuras de crianças por esquadrões da morte, ditaduras militares que assassinaram jovens manifestantes aos desaparecimentos. Violência impregnada nas ruas, nas canções, nos vídeos como do turco Halil Altindere como o seu Wondeland (2013), dos cartazes do argentino Juan Carlos Romero com Violência (1973-1977).
Apelo (2014), de Clara Ianni e Débora Maria da Silva. O Vídeo “convoca ao vivos para recordar os mortos… confrontando o esquecimento”. O local da discussão é o Cemitério Dom Bosco, “criado em 1971 pelo governo militar para receber cadáveres de vítimas do regime repressor…”. O mesmo local, absorve as “vítimas das ações conduzidas pelos esquadrões da morte da Polícia Militar de São Paulo”. Débora Maria da Silva é uma das mães que “perderam seus filhos devido a violência policial” (Guia 31ª Bienal, p. 40-41). Associado a isso está a luta contra a redução da maioridade penal.
Coletivo Mujeres Creando, “fundado em La Paz em 1992… constituindo por prostitutas, poetas, jornalistas, vendedoras, trabalhadoras domésticas, artistas, costureiras, professoras…” O coletivo é atuante em performance, instalações propiciando debate público na “ditadura do patriarcado sobre o corpo da mulher… porque não há nada mais parecido com um machista de direita que um machista de esquerda” (Catálogo 31ª Bienal, p. 35) Atrelada às discussões da autonomia do próprio corpo estão índices altíssimos de problemas decorrentes de abortos realizados na clandestinidade. O “sexismo e o patriarcado institucionalizado” vem aumentando o número de casos de estupros nas grandes cidades. O silêncio, a vergonha e o medo não são computados, embora o índice seja crescente.
Também com Giuseppe Campuzano (1969-2013) quando em 2004, criou o Museo Travesti del Peru; Sergio Zevallos e suas discussões sobre andrógenos, transgêneros e travestis “um conjunto de corpos no qual ´há´ privação de sua condição humana, não por registro e vigilância, mas pelo silêncio e apagamento de seus rastros.” (Catálogo 31ª Bienal, p. 242)
Entre tantas obras e tantos coletivos, o artista argentino León Ferrari (1920-2012) e sua parceria de quinze anos com o coletivo Etcétera, criado em 1997. A obra de León “Palavras Alheias: conversas de Deus com alguns homens e de alguns homens com alguns homens e com Deus”, de 1967, vem do combatente artista ateu que empunhou suas mãos à criação de obras que denunciassem responsabilidades, principalmente da igreja católica durante a ditadura militar da Argentina. Seu filho, Ariel, faz parte da lista dos 30 mil desaparecidos desse período. O elo entre o artista renomado e o coletivo vem do conhecimento do passado à obra contemporânea Errar de Dios, no corpo objeto da violência.
Referências:
31ª Bienal (Catálogo e Guia), Como (…) coisas que não existem, 2014.
Blog do IMS, por Carla Rodrigues http://www.blogdoims.com.br/ims/profissao-professor-proanacao-carla-rodrigues
Paraná 247, por Mário Sérgio Cortella http://migre.me/qqRR7
Revista CULT junho 2015, n. 202, ano 18. O Terrorismo poético, Peter Pál Pelbart por Heitor Ferraz, p. 10-15.
Revista CULT, agosto 2013, ano 16, n. 182. Pela responsabilidade intelectual e política, Marilena Chauí por Juvenal Savian Filho.
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