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Série Ficcional H. Miller XXIX: A cama divã

30 out

por Lia Mirror, Laila Lizmann & Lara Kleine Augen

 

 

(…) As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
(Álvaro de Campos)

 

Após a morte de nosso amigo ancião Blake, os livros foram dispersos, as histórias perderam os fios de Ariadne e os monstros que mastigavam as entranhas dos que liam deixaram de existir. O salto para o abismo se deu entre a realidade e a ficção. (*) Assim, o bicho raivoso da vaidade desumanizou e fez das suas noites outras bocas, outros corpos.

A reação humana rasgou o tempo, cortou as letras, os segredos, as palavras, o gosto e as fotos. Não bastasse devorou o próprio coração, assim como Rimbaud, lentamente. Reconstruirá um Frankenstein somente amado por seu criador ou uma Alma Mahler inflável e amada por Kokoschka?

Alma Margaretha Maria Schindler ou Alma Mahler-Werfel (1879-1964) de Oscar Kokoschka (1886-1980). A boneca Alma Mahler. Projeto/desenho de Kokoschka para a feitura em tamanho natural s/d.

Da pedra bruta brotou uma flor rara. Da brutal fragilidade nasceu um vento forte para as ondas de um mar tempestuoso.

“Agora

não navega

nem tampouco vive

erra

se

escrito”

( C. Vogt, Marinheiro Pessoa**)


Louise Bourgeois (1911–2010) Cama azul, 1998 gravura 49,5 x 67,3 cm.

Nota:

(*) Foucault: “A ficção consiste não em fazer ver o invisível, mas em fazer ver até que ponto é invisível a invisibilidade do visível.” (Foucault, 1990)

 (**) Carlos Vogt. O Itinerário do Carteiro Cartógrafo – Cantografia. São Paulo: Massao Ohno, 1982.

 

 

Série MANTOS II: Cultura Artística & Histórica – Cinema.

30 out

por Gisele Miranda 

É importante dizer que não é a quantidade de ‘bilhetes’ que sustenta esse texto, mas como a memória exercita seu papel diante da vida. São 21 anos costurados com conteúdo, temporalidades, crenças, dores, políticas, guerras, cores, sabores, amores e valores, em salas de cinemas que não existem mais, tal como o Cineclube Bixiga. No cineclube nasceu minha paixão por Truffaut (1932-1984) ou por todos da Nouvelle Vague

Pela resistência da Mostra Internacional de Cinema que pulsa dedico o Manto II, a Leon Cakoff (1948 -2011) e à Renata de Almeida (1965-).

Sempre acompanhei os esforços deles e posteriormente a bravia trajetória de Renata para manter as Mostras, trazer diretores, atores, atrizes para debates, enfim, um grande evento anual imprescindível à nossa cultura e com a nossa participação no juri popular.

Manto II - Cinema, maio 2020.  tecido 2, 5 m x 50 cm. Linha, agulha e bilhetes de cinemas.

Manto II – Cinema, maio 2020. tecido 2, 6 m x 54 cm. Linha, agulha e bilhetes de cinemas.

O sorriso da memória vem com a imagem de Samira Makhmalbaf (1980-), após assistir A Maçã. Vem com Radu Mihăileanu (1958-), pelo Trem da Vida. Por conhecer Amos Gitai (1950-), Kusturica  (1954-), entre tantos outros.

Há uma infinidade de descobertas, de alimentos à alma, porque cultura é mais do que as belas artes. É memória, é política, é história, é técnica, é cozinha, é vestuário, é religião etc… Onde é dado o sentido do tempo, do visível, do invisível, do sagrado, do profano, do prazer, do desejo, da beleza e da feiura, da bondade e da maldade, da justiça e da injustiça.* Por vezes, um limite tênue entre o básico e o nada; entre a luta e o abandono; entre o desemprego e o desespero à estranha derrota. Talvez, seja esse o motivo para costurar o MANTO, bordar, furar, sangrar, lembrar, criticar e me colocar como Michel Aubry (1959 -) quando costurou “mobílias, instrumentos, tecidos…”: mantos históricos e com seus “sintomas políticos e sociais.” **

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Filmes listados:

  1. A Vida é Bela. Grupo Severiano Ribeiro, 22 fevereiro 1999, às 16:20 h.
  2. Wilde. 25 fevereiro 1999. Alvorada Cinemat. – Sala Cândido Portinari, às 21:45 h.
  3. Barroco Balcânico. Mostra Internacional de Cinema – sala Auditório, 16 outubro 1999, às 12:15 h.
  4. Garotas do futuro. Mostra Internacional de Cinema – Cine Sesc 17 outubro 1999, às 13:15 h.
  5. A Humanidade. Mostra Internacional de Cinema – Cine Sesc, 17 outubro 1999, às 15:00 h.
  6. Simon Magnus. Mostra Internacional de Cinema – Cine Sesc, 17 outubro 1999, às 17:45 h.
  7. Mero Acaso. Mostra Internacional de Cinema – Cine Arte 1, outubro 1999, às 18h.
  8. Agarrando Sonhos. Mostra Internacional de Cinema – Cine Sesc, 23 outubro 1999, às 12:00 h.
  9. Um só pecado. 5 março 2000, às 21:30 h.
  10. Uma boa dona de casa. Mostra Internacional de Cinema – Cine Sesc, 17 outubro 1999, às 17:45 h.
  11. E aí meu irmão cadê você. Mostra Internacional de Cinema – Cine Sesc, 20 outubro 2000, às 16:10 h.
  12. Cerca de la frontera. Mostra Internacional de Cinema, Cine Unibanco 1, 20 outubro 2000, às 20:25 h.
  13. Minha vida em suas mãos. Mostra Internacional de Cinema – Unibanco 1, 20 outubro 2000, às 22:15 h.
  14. Leste-Oeste o amor no ex…. Mostra Internacional de Cinema, Sala vitrine, 21 outubro 2000, às 14:00 h.
  15. Canções do segundo amor. Mostra Internacional de Cinema, Cine Unibanco 1, 21 outubro 2000, às 16:30 h.
  16. A deusa de 1967. Mostra Internacional de Cinema – MASP, 21 outubro 2000, às 20:40 h.
  17. A lenda de Rita. Mostra Internacional de Cinema, Unibanco 1, 22 outubro 2000, às 14:00 h.
  18. O recrutador. Mostra Internacional de Cinema, Unibanco 1, 22 outubro 2000, às 16:10 h.
  19. Butterfly. Mostra Internacional de Cinema, Cine Sesc, 22 outubro 2000, às 18:35 h.
  20. Cabecita rubia. Mostra Internacional de Cinema, MASP, 22 outubro 2000, às 20:50 h.
  21. Bastardos no paraíso. Mostra Internacional de Cinema, Cine Sesc, 22 outubro 2000, às 22:30 h.
  22. Porno film. Mostra Internacional de Cinema, Cine Arte, 23 outubro, às 15:50 h.
  23. Pele de homem, coração de besta. Mostra Internacional de Cinema, Cine Vitrine, 23 outubro 2000, 17: 25 h.
  24. A origem do homem. Mostra Internacional de Cinema – Cine Arte, 23 outubro 2000, às 21:40 h.
  25. Antes do anoitecer. Mostra Internacional de Cinema, Cine Arte 1, 23 outubro 2000, às 23:40 h.
  26. Tesoro mio. Mostra Internacional de Cinema, Vitrine, 24 outubro 2000, às 14:00 h.
  27. Anjos do Universo. Mostra Internacional de Cinema, Vitrine, 24 outubro 2000, às 15:35 h.
  28. Quem tem medo de…. Mostra Internacional de Cinema, Vitrine, 24 outubro 2000, às 17:45 h.
  29. O jogo de Mao. Mostra Internacional de Cinema, Cine Sesc, 24 outubro 2000, às 19:30 h.
  30. Sem descanso. Mostra Internacional de Cinema, Vitrine, 25 outubro 2000, às 14:00 h.
  31. Uma relação pornográfica. Mostra Internacional de Cinema, Vitrine, 25 outubro 2000, às 16:10 h.
  32. 101 reykjavk. Mostra Internacional de Cinema, Vitrine, 25 outubro 2000, às 19:20 h.
  33. Segunda Piel. Mostra Internacional de Cinema, Cine Arte, 25 outubro 2000, às 21:10 h.
  34. Luna papa. Mostra Internacional de Cinema, Vitrine, 26 outubro 2000, às 15:35 h.
  35. O quarto das meninas. Mostra Internacional de Cinema, Cine Sesc, 26 outubro 2000, às 17:55 h.
  36. Virilidade e outros dilemas modernos. Mostra Internacional de Cinema, Vitrine, 26 outubro 2000, às 21:40 h.
  37. Thomas Pinchon – uma jornada. Cinearte, 27 outubro 2001, às 16:10 h.
  38. Ano novo com neve. Mostra Internacional de Cinema, Cine Arte, 27 outubro 2000, às 17:20 h.
  39. O rei está vivo. Mostra Internacional de Cinema, Vitrine, 27 outubro 2000, às 19:35 h.
  40. Baise Moi. Mostra Internacional de Cinema, Vitrine, 27 outubro 2000, às 20 h.
  41. You really got me. Cine Unibanco, 27 outubro 2001, às 00:00 h.
  42. O dia em que me tornei mulher. Mostra Internacional de Cinema, Unibanco, 28 outubro 2000, às 17:425 h.
  43. Fama para todos. Mostra Internacional de Cinema,Cine Arte, 28 outubro 2000, às 19:40 h.
  44. Signos e desejos. Mostra Internacional de Cinema, Vitrine, 28 outubro 2000, às 21:35 h.
  45. Sábado. Cinearte, 28 outubro 2001, às 00:15 h.
  46. Vidas. Mostra Internacional de Cinema, Cine Arte, 29 outubro 2000, às 14:00 h.
  47. Faz de conta que não estou aqui. Mostra Internacional de Cinema, Vitrine, 29 outubro 2000, às 17:55 h.
  48. Vatel. Mostra Internacional de Cinema, Cine Sesc, 29 outubro 2000, às 21:35 h.
  49. Wojaczek. Mostra Internacional de Cinema, Cine Sesc, 29 outubro 2000, às 23:55 h.
  50. Gotas de água em pedras escaldantes. Mostra Internacional de Cinema, MASP, 30 outubro 2000, às 20:30 h.
  51. Como Samira fez o quadro negro. Mostra Internacional de Cinema, Sala UOL, 30 outubro 2000, às 15:20 h.
  52. Alameda do Sol. Mostra Internacional de Cinema, Cine Arte 1, 30 outubro 2000, às 23:05 h.
  53. L´Histoire de Adele H. Top Cine, 29 novembro 2000, às 22:00 h.
  54. Waking life. Sala UOL, 30 outubro 2001, às 14:00 h.
  55. Moulin Rouge. Cinearte, 29 agosto 2001, às 21:30 h.
  56. A professora de piano. Cinearte, 25 janeiro 2002, às 14:10 h.
  57. Samsara. Cine Unibanco, 19 fevereiro 2003, às 21:00 h.
  58. Frida. Cine Unibanco, 13 abril 2003, às 14:30 h.
  59. Kamchatka. Cinearte, 02 maio 2003, às 22:00 h.
  60. Aos olhos de uma mulher. UCL, 19 julho 2003, às 00:30h.
  61. Festival Anima Mundi. Auditório da Vila Mariana, 23 julho 2003, às 00:30h
  62. A mulher gato. Mostra Internacional infantil… s/d.
  63. SUR – Fernando Solanas. Mostra SESC de Artes Latinidades -ciclo de cinema no Cinesesc, 22 agosto 2003, às 15:00 h.
  64. Ainda pego essa al….Cine Santa Cruz, 20 setembro 2003, às 14:30 h.
  65. Balzac e a …. Cine Unibanco, 14 agosto 2004, às 22:00 h.
  66. Homem Pelicano. Cine Santa Cruz — II Mostra de Cinema Infantil, 28 setembro de 2005, às 19:10 h.
  67. Noitão (3 filmes) no Bellas Artes, sala Cândido Portinari, 12 agosto 2005, às 23:52 h.
  68. Crime delicado. Cine Unibanco, 28 janeiro 2006, às 22:00 h.
  69. Melissa P. – 100 escovadas antes de dormir. Mostra Internacional de Cinema – Cinemark santa Cruz 9, 20 outubro 2006, às 21:30 h.
  70. O Caminho para Guantanamo. Mostra Internacional de Cinema – Cinemark Santa Cruz 9, 21 outubro 2006, às 21:30 h.
  71. Sonhos com Shanghai. Mostra Internacional de Cinema – Cine Sesc, 22 outubro 2006, às 13:30 h.
  72. Voltando ao passado. Mostra Internacional de Cinema – Cine Bombril, 23 outubro 2006, às 18:30 h.
  73. Dias de Glória. Mostra Internacional de Cinema – Reserva Cultural 2, 24 outubro 2006, às 19:30 h.
  74. Nue Propriete. Mostra Internacional de Cinema – Reserva Cultural 2, 24 outubro 2006, às 21:30 h.
  75. A Soap. Mostra Internacional de Cinema – Cinemark Santa Cruz 9, 25 outubro 2006, às 21:30 h.
  76. Arame farpado. Reserva Cultural 2, 26 outubro 2006, às 13:00 h.
  77. Amu. Reserva Cultural 2, 26 outubro 2006, às 15:20 h.
  78. Como festejei o fim do mundo. Cinemark Santa Cruz 9, 26 outubro 2006, às 19:00 h.
  79. Uma verdade inconveniente. Cinemark Santa Cruz 9, 26 outubro 2006, às 21:30 h.
  80. Oscar Niemeyer – a vida é um sopro. Cine Bombril, 18 maio 2007, às 16:00 h.
  81. Goyas Ghost. Cine Leblon 1(RJ/RJ), maio 2007, às 16:30 h.
  82. A Massai branca. Rio Design 3 (RJ/RJ), 22 setembro 2007, às 19:00 h.
  83. Bem-Vindo São Paulo. Rio Design 3 (RJ/RJ), 22 setembro 2007, às 22:00 hs.
  84. Caos Calmo. Sala 4 (cortesia), outubro 2008, às ..:15 h.
  85. Baby love. Cine Reserva Cultural, 16 outubro 2008, às 13:10 h.
  86. Como Albert viu as montanhas se moverem. Mostra Internacional de Cinema – Espaço Unibanco 5, 20 outubro 2008, às 16:00 h.
  87. Fim da noite. Cine Unibanco, 03 novembro 2011, às 22:00 h.
  88. Fim de semana em casa. Espaço Itaú de Cinema, 19 outubro 2012, às 16:00 h.
  89. Elefante Branco. Espaço Itaú, 15 novembro 2012, às 16:00 h.
  90. O Homem da máfia. Espaço Itaú, 01 dezembro 2012, às 11:00 h.
  91. Na terra de amor e ódio. Espaço Itaú, 15 dezembro 2012, às 11:00 h.
  92. A filha do pai. Espaço Itaú, 03 janeiro 2013, às 19:40 h.
  93. Ha Ha Ha. Cine Sesc, 05 janeiro 2013, às 14:30 h.
  94. As quatro voltas. Espaço Itaú, 20 janeiro 2013, às 20:00 h
  95. Segredos de sangue. Espaço Itaú, 15 junho 2013, às 14:00 h.
  96. Augustine. Sala 2, 13 julho 2013, às 21:30 h.
  97. A bela que dorme. Espaço Itaú, 1 julho 2013, às 16:30 h.
  98. Camille Claudel, 1915. Cine L. Cultura, 14 agosto 2013, às 18:00 h.
  99. Ferrugem e osso. Sala 1, 16 agosto 2013, às 19:00 h.
  100. Flores Raras. Cine L. Cultura, 17 agosto 2013, às 17:00 h.
  101. O verão do Skylab. Cine L. Cultura, 05 setembro 2013, às 14:00 h.
  102. A Religiosa. Sala 2, 14 setembro 2013, às 19:20 h.
  103. Uma primavera com a minha mãe. Sala 4, 03 outubro 2013, 15:20 h.
  104. Os belos dias. Sala 1, 16 outubro 2013, às 15:30 h.
  105. Mar silencioso. Reserva Cultural 1, 18 outubro 2013, às 18:00 h.
  106. Amar. Reserva Cultural, 18 outubro 2013, às 15:50 h.
  107. Trem noturno para Lisboa. Cine L. Cultura, 29 novembro 2013, às 19:50 h.
  108. Pais e filhos. Sala 1, 30 dezembro 2013, às 22h.
  109. Ninfomaníaca. Espaço Itaú, 08 fevereiro 2014, às 17:00 h.
  110. O grande hotel Budapeste. Espaço Itaú, 16 agosto 2014, às 16:00 h.
  111. Amantes eternos. Caixa Belas Artes, 17 agosto 2014, às 14:00 h.
  112. Viollette. Reserva Cultural, 30 agosto 2014, às 18:40 h.
  113. Magia ao luar. Espaço Itaú, 31 agosto 2014, às 18:00 h.
  114. Mommy. Sala 4, 25 dezembro 2014, às 21:25 h.
  115. Relatos Selvagens. 03 janeiro 2015, às 17:00 h.
  116. A família Bellier.  janeiro 2015, às 20 h.
  117. As Invisíveis. Cine Sala, 24 fevereiro 2020, às 14:30 h.
  118. Parasita. Cine Santa Cruz 07, 22 fevereiro 2020, às 15:40 h.

(*) CUNHA, Maria Clementina Pereira (Org.) O Direito à Memória: patrimônio histórico e cidadania/DPH. São Paulo: DPH, 1992.

(**) Catálogo da 30ª Bienal de São Paulo, 2012, p. 228-229.

Série Releituras Visuais e Breves Comentários IV: VELÁZQUEZ e a Releitura de Antonio Peticov

2 maio

por Gisele Miranda

Diego Rodríguez de Silva VELÁZQUEZ (Sevilha, Espanha, 1599 – Madrid, Espanha, 1660), neto de portugueses, pelo lado paterno; casou com Juana, a filha de seu professor de teoria da arte, Francisco Pacheco.

Velázquez foi um pintor de câmara do reinado de Felipe IV, e de convívio diário com o principal pintor da corte espanhola, Peter Paul Rubens (1577-1640), considerado o maior pintor da época e um proeminente diplomata, pois como alemão de família Calvinista tornou-se importante na Corte Espanhola Católica.

Velázquez alçou séculos com o seu lado humano e social na pintura, além da pomposidade dos retratos da corte em função de seu cargo. Ele tornou-se ídolo para os Impressionistas – ´le peintre des peintres´ para Manet. (Argan, 2004; p. 116)

Há inúmeras releituras acadêmicas sobre essa obra, incluso um ensaio de Michel Foucault (1926-1984) sobre a representação e a perspectiva do espectador em, As Meninas de Velázquez.

As Meninas ou a Família de Felipe IV, de Diego Velázquez (1656) é um raro autorretrato; poucas vezes se retratou, em geral utilizando recursos de espelhos. Rembrandt (1606-1669) tem um histórico de autorretratos. Mas Velázquez, não!

Diego Rodríguez de Silva VELÁZQUEZ (Sevilha, Espanha, 1599 - Madrid, Espanha, 1660) As Meninas ou a Corte de Felipe IV, 1656. Óleo sobre tela, 320,5 x 281,5 cm. Museu do Prado, Madri, Espanha.

Diego Rodríguez de Silva VELÁZQUEZ (Sevilha, Espanha, 1599 – Madrid, Espanha, 1660) As Meninas ou a Família de Felipe IV, 1656. Óleo sobre tela, 320,5 x 281,5 cm. Museu do Prado, Madri, Espanha.

Na Releitura, Antonio Peticov preferiu a metáfora que usou com Rembrandt (as cores) e muita brincadeira na distribuição das personagens. Em As meninas de Antonio, o jogo cênico do pião tanto pode ser o artista ou  a infanta Margarida – um sorriso do Grafismo.

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Antonio Peticov (Assis, SP, Brasil, 1946-)As Meninas do Antonio, 2017. Acrílica sobre tela  150 x 200 cm. Série Releituras.

Mas a sensibilidade que une Peticov a Velázquez é a anã da corte vertida em matrioska, ou seja, com a mesma importância que Velázquez deu em O Menino de Vallecas (1636-1640), o retrato de um anão com a mesma magnitude do Retrato de Felipe IV, de 1644.

Diego Rodríguez de Silva VELÁZQUEZ (Sevilha, Espanha, 1599 – Madrid, Espanha, 1660) Francisco Lezcano, Ou O Menino de Vallecas, 1645. Óleo sobre tela, Museu do Prado (Madrid)

Diego Rodríguez de Silva VELÁZQUEZ (Sevilha, Espanha, 1599 – Madrid, Espanha, 1660) Francisco Lezcano, Ou O Menino de Vallecas, 1645. Óleo sobre tela, 107 x 83 cm. Museu do Prado, Madrid, Espanha.

(*) Nota: Esse texto foi realizado no Instituto de Arte e Cultura Antonio Peticov https://www.peticov.com.br/

(**) Michel Foucault sobre As Meninas de Velázquez: As Meninas por Foucault

Referências:

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Tradução Denise Bottmann & Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e Persuasão: ensaios sobre o Barroco. Tradução Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

BURKE, Peter. (Org.) A Escrita da história: novas perspectivas. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Paulista, 1992.

GOMBRICH, Ernst H. J. História da Arte. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão; Irene Ferreira & Suzana Ferreira Borges. 2 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992. (coleção Repertórios)

Série Ficcional H. Miller XXVIII: Coração

12 jun

por Lia Mirror

“… o espírito é como um rio que procura o mar. ” (Henry Miller)

“- Pode entrar, Dr. Fausto lhe aguarda. ”

Apreensiva adentrei novamente o consultório. De imediato avistei Dr. Fausto e o elogiei pela aparência ´jovem´; a minha corria o tempo dos mortais.  E mesmo com a alma comprometida (1) fui agraciada pelas belas palavras do doutor ao se referir a mim, como uma ´jovem liberta´ devido a constância nos estudos. Disse enfaticamente: – “estudar nos torna jovens! (2)

– “Caríssima, o que a trouxe dessa vez? Ainda há um coração? Ou devoraste o teu como Rimbaud? “

Coração coeur-de-louise bourgeois, 2004
Louise Bourgeois (Paris, França, 1911- Manhattan, NY, EUA, 2010), HEART, 2004.

– Meu coração pesa muito; é como o coração de um beija flor. Há um coração e um Dürer.

– “Desculpe doutor, o sr. Thomas Mann pede urgência! ”

– “Fausto, meu caro.  Venho interceder por esse coração… se a alma não foi vendida pela juventude, o coração não deve ser leiloado.  Uma alma pelo Dürer é a abdicação do ego. Dürer será preservado! Deixe-a ir. Interfiro nessa escrita por conhecer o que sustenta esse Ser. “

corações louise 2006
Louise Bourgeois (Paris, França, 1911- Manhattan, NY, EUA, 2010), Untitled (Hearts), 2006.

Dr. Fausto riu como Mr. Ryde e respondeu como Dr. Jakyll, por conseguinte, como H. Miller. Como se não faltasse mais nada, Robert Louis Stevenson invadiu o consultório aos berros. Mann e Stevenson chegaram a esboçar um confronto, então, gritei a efusão literária até falhar a voz. O coração era meu, a dor era minha. Peguei minha bolsa e saí sem olhar para trás.

A transformação foi imediata: “pele por escamas, pernas por cauda, guelras e música” (3): ao MAR me entreguei. ‎

Referências:

(1) Minha Alma Imortal

(2) MANN, Thomas. Doutor Fausto. Tradução Herbert Caro. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1952. Volume II, p. 417.

(3) A(…)MAR ou “vivendo com saudades”

A (…)MAR ou “vivendo com saudades”

13 abr

Por Caio Graco Madeira

Ela vivia num tempo diferente do meu. A vida dela passava com mais rapidez, e meus pensamentos sobre ela eram como ela se comportava, e como ela agia, e como ela rompia os relacionamentos dela com tamanha facilidade.

Ela é uma mulher que entregou seu corpo ao mar sem medo da solidão do oceano, e que, em retorno, recebeu a dádiva de ser parte das águas. Pele por escamas, pernas por cauda, guelras e música. Uma mulher que tinha sua beleza refletida sobre as águas cristalinas, com o cabelo salgado e o corpo nu molhado, sem o medo narcisista de se matar ao entregar-se ao próprio reflexo na água. Ela nadava com todos os peixes, em conversas intimas com as criaturas sob a maré calma, e quando sentia que sua humanidade à chamava, respirava o oxigênio com orgulho de ser a mulher que era.

Acima da água, ela alegrava-se pensando no que lhe trazia alegria e sentia saudades do que lhe trazia lembranças. E no meio de sua vida tão completa, marinheiros apareciam aqui e ali, seduzidos pela sua beleza. Eles saudavam-na, desejavam-na, atiçavam-na e queriam a bela sereia de qualquer jeito, e, ela ali no seu mar apenas olhava eles se fazerem de bobos.

Seu canto deixavam os idiotas em seus barcos gritando qualquer poesia barata, elogiando e se decompondo nas ideias que eles nem entendiam só pela esperança de conquista-la. E a sereia, tão bondosa, aceitava os desesperos dos homens que achavam que o mar era um trilho para seu automóvel, tão egoisticamente.

Os homens iam e vinham, se jogando no mar e nadando sem futuro para matar a fome dos peixes; as sereias alimentavam o mar antigamente, sabia? Pelo mar todo boiavam e afundavam corpos de homens estúpidos, que alimentavam os peixes enquanto caiam e caiam até o fundo do oceano, não sobrando nada na escuridão mais funda…

E. Nery, A mulher dos quadros do museu, 1988.

Emmanuel Nery (Rio de Janeiro, RJ, 1931- Rio de Janeiro, RJ, 2003) A mulher dos quadros do museu, 1988.

– E como eu nasci então?

– Você nasceu das linhas de um poema de amor – dela com o mar.

Série Ficcional H. Miller XXVII: O corpo por um fio

13 abr

por Lia Mirror

Se você não conseguir fazer com que as palavras trepem, não as masturbe.

(Henry Miller)

Em um daqueles dias torrencialmente chuvosos corri pelas ruas como um dia de sol. O sol era interno no manicômio do meu corpo. Despi as vestimentas morais e ri dos insanos olhares. Molhada também de prazer, torci o peso do encharque e continuei bendizendo o desejo. Blasfemei os tropeços e me joguei como um tênis sobre um fio de alta tensão.

Louise Bourgeois (Paris, França, 1911- Manhattan, NY, EUA, 2010)  Arch of hysteria, 1993.

Por alguns segundos oscilei como um pêndulo; mas logo caí. A queda foi amortecida pelo divã abandonado. As mãos protegeram-me do embate corporal, mas as linhas foram alteradas, foram reescritas. Levantei e caminhei contra o tempo. Confrontei e abri frestas subterrâneas. Nadei rios de correntezas e subi o morro para avistar o mar. Era o meu morro do nascimento. Meu Morro, Morro de saudades. Meu desejo, Morro de desejos.

Ao poetizar o Morro dei conta de que nosso encontro não estava previsto. Insurgimos e esculpimos nosso próprio tempo. Nossa mistura de segredos e diferenças. O gosto do gozo. O prazer da ficção.

O Sub-Término do Consciente (Parte I)

29 nov

por Caio Graco Madeira

O sub-término do consciente ocorreu durante um jantar à luz de velas com comida congelada servida a dois, preparada às pressas pelo namorado. O apartamento, no 8º andar, era pouco mobiliado e a mesa balançava com o sobrepeso da comida em um dos lados. A música que impulsionava o clima era o incessante andar do cachorro hiperativo do vizinho de cima. A namorada sentada no canto da mesa pensava estar em mais um encontro com seu namorado, enquanto o namorado no outro canto chamou-a aquela noite para terminar o namoro.  

A história a seguir se passa no fundo da mente do namorado durante o término – mais precisamente na ponte que liga o consciente e o subconsciente, narrado por um pensamento que leva a outro, que vem de outro, que lembra outro, mistura-se a outro e forma outro, podendo deformar outro ou a si próprio antes (ou depois) de se apresentar ao consciente. E a consciência não é necessária no fundo da mente de quem se deixa levar, conscientemente, pela inconsciência. Por este motivo, não confie em tudo que lê como sendo tudo que ouve ou tudo que falam. Mas desconfiar de tudo seria um erro ainda maior. 

A história a seguir começa exatamente um segundo antes do término, atinge seu clímax no ápice do sub-término da consciência e termina além da vida que é narrada, e nada além disso.

ismael-nery-agonia-1931

Ismael Nery (1900-1934) Visão interna – Agonia, 1931. Óleo sobre tela.

…desfaça seu olhar ou vou ter que me exaltar.

Essa expressão em teu rosto, tão leve e bela, amargura o meu. Sei que teu amor ainda vive, mas o meu já pereceu. Esse teu olhar apaixonado faz meu corpo tremer e meu pulso fechar, enchendo-me com uma vontade pulsante de te estrangular. Como pode manter a beleza em seu rosto a me ver sobrecarregar? Comparo-me a um leão mirando ao longe uma jugular, com motivação instintiva incendiando o olhar. Fiz-te um jantar, que sem tua presença estaria congelado, intragável, assim como seu amado namorado que lhe dirige palavras em meio de um pestanejar não tão bem pensado, usurpado de forma e com emoção instável,

eu me sinto incontrolável,

…deslocando meus pensamentos para um assunto que não havia sido nem ao menos comentado durante a mesa, levando-me a agonizar com diálogos isentos de qualquer valor à sanidade que por tanto tempo me fora proporcionada – porém não tão bem calculada – e que, com o tempo, achou um atalho depositado em latas, copos e principalmente taças. Taça igual a esta que seguro na mão, descontroladamente pingando gotas no chão, provavelmente devido ao tremor causado pela forte emoção de estar aqui contigo nesta noite, com pensamentos e ideias em perigosa comunhão.

E não!, não fale nada, pois sei bem como você despreza esse meu eu tão alterado, embriaga-… extasiado. Como detesta ver teu amor defronte a ti internamente violentado por um líquido que não mata a sede em uma garrafa apenas. E você pode ter certeza que essa insanidade misturada na bebida já respingou insensatez em alguns momentos de fraqueza em outras ocasiões, mas que poucos – muito poucos – perceberam que havia algo errado. Foram sempre alguns poucos respingos em ocasiões que pediam trajes secos ao invés de ligeiramente molhados, mas que todos culparam o manchado traje a um descuido com o copo que me fora dado, e que provavelmente deve ter molhado também os pobres desavisados que estavam ao meu lado, que riram de um embaraço ou coisa qualquer que possa ter causado o descuido por minha parte. Pequenos momentos são fortes como qualquer grande momento quando são repetidos em quantidade e honesto intento. Aumentam também em intensidade quando são alimentados pelo tempo que passa. Mas eu divago à sua companhia.

Esta noite, última noite, é nossa! E olha pra você…

Mesmo depois de eu esquentar o jantar e acender estas velas sob a transcendente luz do luar, você me trata como se estivesse desesperada, como se estivesse acabando todo seu ar. Então lhe pergunto: estou eu respirando todo seu ar? Não consegue tomar fôlego com minha mente a reclamar? Estou aqui a terminar!, a revogar teu acesso ao meu afeto. Estou a ausentar teu julgamento de certo e errado, pois estou cansado de vaguear contigo por anos e anos a fio, sentindo que estou me despedindo de meus próprios aniversários no caminho.: estou sentindo o tempo deformar!, captando o instante com um relógio quebrado que não sei consertar – e que muito menos posso pagar por um conserto, pois vivo num rotineiro anti-deleito em nossos encontros que me toma a vida inteira, fabricando calendários anuais diariamente, cada um com um ano diferente e com os feriados ausentes para descansar;

Ou até pior: Todo minuto que passo contigo é dois de janeiro do ano seguinte, onde volto de carro num engarrafamento na estrada, relembrando à força de todos os compromissos que havia pendurado no varal do esquecimento antes de ir celebrar um novo ano na praia, otimista no réveillon. Dois de janeiro, onde passo por acidentes rodoviários e tenho meus devaneios imaginários cortados por buzinas de caminhão, enquanto tento – mesmo que por um momento – sentir mais uma vez meus dedos do pé carinhosamente enterrados na areia e ter meu mundo focado apenas nos desenhos barulhentos que fizeram os fogos de artificio na noite anterior. Mas, assim como nosso amor, é apenas possível lembrar o que passou e impossível sentir de novo – pois você me prende num presente amargo filtrado por pensamentos de um passado nostálgico. O tempo contigo vai longe e me envelhece, e você esquece que eu como comida congelada todo dia e vou morrer cedo

…e não é sua vez de falar!

Não há diálogo neste monólogo a dois. O que tenho a dizer não foi construído esta noite, sabe? Meu delírio foi arquitetado nas madrugadas em que a insônia deixava minhas pálpebras acorrentadas à inercia de um quarto escuro, conduzindo meu pensamento inquieto e intrigado pelo meio como o amor preenche o vazio que, agora, se alimenta do meu ânimo; e que não parece dar-se nunca como satisfeito. Está noite é apenas a culminante explosão de algo que se amontoou em meu peito e, dito e feito, aqui estou. Minha cabeça sobrecarrega afoita sobre meu fino e exageradamente comprido pescoço toda a originalidade do nosso amor, que por um tempo até nos serviu de um apertado cobertor neste intranquilo mundo frio; mas que agora não parece ser nada mais do que um esboço de um projeto recíproco e indolor, fadado a se contentar com a bruta realidade de se encontrar num dolorido passado sem cor.

Mas ainda assim, para mim, este término é o mérito de uma busca pela harmonia de dois corpos que servem como depósitos de emoções, e que buscam um traço recíproco de passados sinuosos e presentes afagáveis – em busca de um futuro perfeito. De duas mentes que não mentem, ou pelo menos não mentem tão bem quanto suas bocas parecem deixar aparente ao beijarem-se de maneira fosca, de modo que possam suprimir o difícil comprometimento das palavras que devaneiam em pensamento ciumento e duvidoso ao longe, mas que é frenético e animalesco de perto – e apenas de perto. Fervoroso a ti, ruidoso a mim, e vice-versa, num ciclo que segue tanto rumo quanto o alheio entendimento da vida após a morte por pessoas ainda vivas, no qual ainda me falha o entendimento. Se não há como descrever a vida de modo fiel, como crer nos detalhes que entendemos da morte? Parece inacreditável para mim, inaceitável até, mas não parou você de tentar me fazer entender o que há após o fim, e ainda logo no começo do relacionamento!

E eu, que fingi aceitamento aos seus entendimentos; o que isso diz de mim? E é por isso que não te culpo ao se surpreender com este término, pois sempre diante do divino, acaba esquecendo-se da realidade. Passa a vida em constante preocupação com o que há depois da fatalidade, com toda essa religiosidade sufocando tua jovialidade, que até se esquece de se preocupar com a infinidade de momentos que lhe escapam a sua frente, que se perdem com o lento reinvento de um momento mais interessante vindo da minha parte, quase sempre. Entende o mérito que vejo no término? Jogamos-nos intérritos a uma incerteza e nos julgamos certos por todo o tempo, isentos de preconceitos, buscando um entendimento maior do que “o que pode estar observando o olhar que estamos observando olhar a nós”, e chegamos a isso: um vestígio de um amor que pareceu propicio a todo o momento e que, neste momento, estou botando um ponto final.

Não sou bom moço, tuas lagrimas molham apenas teu rosto. Aliás, mentira. Elas salgam também a comida e brindam com o desgosto, que me faz perceber que o gosto do álcool é como poesia, como maresia: É como se a plenitude do Amor descansasse à margem da praia, com cada grão de areia representando um Amor entre duas pessoas em qualquer parte do mundo. E nosso Amor tão profundo, grão de areia único, vivendo junto a outros grãos por tanto tempo seco, afogou-se ao ser levado pela correnteza forte, levando nosso Amor e outros grãos de areia a um outro lugar, desacatando-os bem no meio de uma vida pacata de observar vôlei de praia e crianças e castelos e mulheres lindas com biquínis pequenos, além das diárias de um cinema belo em uma tela ao horizonte que tem sessões às seis da manhã e da tarde… e levando-os a uma viagem forçada a um mundo mergulhado em hostilidade, submetendo os grãos submersos a uma visão desprivilegiada da que tinham anteriormente, vendo agora apenas uma imensidão azul onde o sol mente sua beleza com uma distorcida iluminação difícil de encantar ao ser vista do fundo do mar. Porque você insiste em brincar de mar é o motivo pelo qual eu não consigo mais te amar.

Não consigo erguer a cabeça para respirar, só consigo perder a cabeça ao sentir você me afundar. Não consigo ter certeza do chão que piso, e sinto isso já faz meses. Não consigo nem mais olhar você como olhava antes, com críticas observações peneiradas em sorrisos enamorados e confiança e encanto, fotografada em casamentos da realidade com a minha imaginação. Já se foi o tempo que a via como rotineira ambição, e meus olhos agora buscam de sua imagem uma sofrida emancipação. Vejo-me como veria um documentarista amador que percorre os fatos que alimentaram nosso falso amor até ter uma indigestão, vomitando tudo pra fora e morrer por inanição. Agora é a hora de se desfazer; de fazer desaparecer uma angústia que botou uma máscara antiga, que tão precocemente chamamos de amor; e será que devo parar de falar? Será que deixei meu ponto claro? Nem falei sobre querer minha liberdade. Ela está abrindo a boca, ela vai tentar rebater, vai falar de mim, o que vai ser? Vai me quebrar, vai me contradizer, vai querer partir pra cima e me bater, jogar pratos, vai.

Ela se levantou e começou a falar.

Série Ficcional H. Miller XXIV: ´minha alma imortal´

2 ago

por Lia Mirror, Gisèle Miranda e Laila Lizmann

 

“… Minha alma imortal… que venha a manhã com brasas de satã…”

Arthur Rimbaud (Charleville-Mézères, 1854- Marselha, 1891)

Decidi colocar minha alma à venda. Corri para conversar com Thomas Mann que de imediato indicou-me o dr. Fausto. Antes de assumir sua dialética visão de liberdade que lhe valeu a alma, gritei:  – minha alma imortal está à venda!!!

Exclui a carne tal como ele (s). Quanto vale minha alma? Um Dürer? Afinal, todos os planetas convergem para o signo de Escorpião bem como mestre Dürer os desenhou sabiamente no folheto medical. (1)

Minucioso Dürer! Os bons sentidos te louvam por suas gravuras; só o olhar próximo pode dimensionar o tamanho do que você fez. Percorro cada centímetro dos seus sentidos. Ah, essas Luzes do Norte!

Dürer  o cavaleiro e o demônio

Dürer (Nuremberg, 1471 – Nuremberg, 1528), O Cavaleiro, a Morte e o Demônio, 1513. Gravura sobre metal 25,19 cm.

Inclino-me a comparar sua solidão com um abismo, no qual se aprofundam, sem ruído nem rastro, os sentimentos…, disse-me dr. Fausto em consulta. (2) Interrompi sua fala para dizer que segundo meu amigo ancião: – a solidão é um porvir para poucos! Complementei cantarolando: …vou botar minha alma à venda… nada vem de graça, nem o pão nem a cachaça… [3]

Dr. Fausto riu como Miller. Meus olhos foram atravessados a nado. Nesse percurso vi e ouvi trechos do escárnio da vida. Alguns vinham de Henry Miller, outros de Thomas Mann até chegar Robert Louis Stevenson.

Ao ampliar meu olhar naquele mar de palavras, vi o retrato de Dorian Gray. Pedi a dr. Fausto que parasse com aquela miscelânea e que fôssemos direto ao ponto, ou seja, a venda de minha alma.

Dr. Fausto riu como Mr. Ryde. Vi uma figura que “assemelhava-se a uma gravura de Albrech Dürer – uma mistura de todos os demônios sombrios, irascíveis, taciturnos…” (3).

Quando dei por mim, ouvi em sussurros…sua alma merece um Dürer, disse Miller. dürer detalhe o cavaleiro... 1513

Dürer (Nuremberg, 1471 – Nuremberg, 1528), Detalhe da assinatura de Albrecht Dürer em O Cavaleiro, a Morte e o Demônio, 1513.Notas:

(1) Mann, 1947: 313

(2) Mann, 1947: 11

(3) Zeca Baleiro, Babylon, 2000.

(4) Henry Miller, Trópico de câncer 

Referências:

MANN, T. Doutor Fausto (I). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1947.

MILLER, H. Trópico de Câncer. Trad. Aydano Arruda. Rio de Janeiro: O Globo: São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.

RENASCIMENTO Alemão: gravura da coleção Rothschild colletion. Texto Teixeira Coelho, Pascal Torres. São Paulo: Comunique Editorial, 2012.

STEVENSON, R. O estranho caso de Dr. Jakyll e Mr. Ryde. Rio de Janeiro: Clássicos Econômicos Newton, 1996.

Série Ficcional H. Miller XXI, parte I: “Digo que foram as aquarelas de Turner que me fizeram tudo isso começar.” (*)

27 jan

por Lia Mirror & Laila Lizmann

 

Ninguém nasce artista. Escolhe-se isso! E, quando se escolhe ser o primeiro e o último entre os homens, não se acha nada estranho dormir com um jumento, colocar suas patas num balde de lixo ou engolir repreensões e insultos de todos os que estão próximos e dos entes queridos que encaram seu estilo de vida como um grave erro.

De vez em quando eu me revolto, mesmo contra aquilo que acredito de todo coração. Tenho de atacar tudo, inclusive a mim mesmo.

(MILLER, Big Sur e as laranjas de Hieronymus Bosch, 2006, pp. 219; 355)

Disse em silêncio ao seu Alberto: No meio do caos, a formação das pessoas parece mais eficaz; e a escrita das diversas escritas, subliminares, imanentes, refúgio necessário entre um sujeito múltiplo e as máximas em devires alicerçado a um estado artístico que é cria indomável, reverbera, grita, esbofeteia, interfere, questiona, enfrenta, supera e alcança o ápice da falésia – também para morrer.

Esse encontro é invisível aos outros. Foi o que pensei durante o almoço com o seu Alberto. E sua resposta foi aquele olhar que tudo ouve. Sorri a lembrança do curioso encontro com H. Miller quando tomou para si o ofício de livreiro.

H. Miller não estava nas prateleiras, nem nos amontoados do chão. Então, resolvi pensar em alguns trechos e as palavras vieram como água do mar atravessando os rochedos da memória, perfurando com o tempo espaços intransponíveis. Foi quando aquela voz interceptou o silêncio ambiente e as tantas vozes ocultas que declamavam H. Miller.

– “Quem você está procurando?”

Agarrei nas rochas para não morrer afogada. Fiquei engasgada com tanta água à minha volta e com tamanha força que me prensava nas pedras e me cortava nos movimentos. Esqueci quem procurava, mas as frases vieram em momentos de respiração. Dizia trechos e me afogava.

TURNER, J.M.W. (1775-1851), Bell Rock Lighthouse, 1819

TURNER, J.M.W. (Londres, Reino Unido, 1775- Londres, reino Unido, 1851), Bell Rock Lighthouse, 1819. Aquarela e guache sobre papel, 30,60 x 45,50 cm. Galeria Nacional da Escócia.

Ele tudo viu e disse: – “Sei que a água é tranquilizante para os loucos, assim como a música.” (1) Quem sugeriu a leitura?

– Um amigo ancião, assim como Blake. Espere! Conheço essa frase. Algo sobre o New Orleans? (pensei: “seus olhos desenvolvem línguas, lábios, orelhas, espalham cada pensamento, cada impulso”) (2) Por que? Você é escritor? O livreiro fez sinal que sim; então eu disse: “soube que era escritor na hora em que te vi” (3) Mas o que estamos fazendo? Não sou Bud Clausen para te dizer isso!

Olhei para seu o Alberto e “meus olhos se encheram de lágrimas. O passado estava vivo outra vez; vivia em cada fachada, cada portal, cada cornija, nas próprias pedras sob nossos pés.” (4)

Notas:

(*) MILLER, Henry. Big Sur e as laranjas de Hieronymus Bosch. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 107.


(1) Miller, Pesadelo refrigerado, 2006, 115.

(2) Miller, Pesadelo refrigerado, 2006, 98.

(3) Miller, Pesadelo refrigerado, 2006, 93

(4) Miller, Pesadelo refrigerado, 2006, 83

Referências:

CARDOSO JR., Hélio Rebello (Org.) Inconsciente Multiplicidade: conceito, problemas e práticas segundo Deleuze e Guattari. São Paulo: Editora UNESP, 2007.

MILLER, Henry. Pesadelo Refrigerado. São Paulo: Francis, 2006.

SHAFFER, A. Os grandes filósofos que fracassaram no amor.São Paulo: Ley, 2012

Série Ficcional H. Miller XX (final I): “o segredo dos seus olhos” (*)

4 nov

por Lia Mirror & Laila Lizmann

E para o rebelde, mais que para todos os homens, é necessário conhecer o amor e dá-lo ainda mais que recebê-lo, e ainda mais que dar, ser o amor.  (Henry Miller, A hora dos assassinos, 2003)

Os braços erguidos e a contagem dos segundos. Pergunto-me se terei asas, nadadeiras…: “Dois, um…”. Prendi a respiração e fechei os olhos para pular.  Contei novamente os segundos e perdi a conta por não querer saber do tempo. Nem mesmo a memória interferiu; vivi a experiência sem a ingerência dos enquadramentos.

Experienciei as vanguardas e subverti as regras num bom salto em alto mar. E nesse exato instante, Miller envolveu-me com a permissão de Iemanjá. Flores foram surgindo em meio aos pentes, grampos, fitas, batons. Eram bocas que diziam palavras inscritas em borbulhas.

Nelson Leirner (São Paulo, SP, 1932-Rio de Janeiro, RJ, 2020), Caminho de Santos, 2008.

Apesar de tanta beleza, logo fiquei surda. Uma euforia do agouro se personificou no Deus da Carnificina, mas o medo não emergiu.  Cheguei a ver o sangue, as vísceras e os rompantes. Pensei imediatamente em Miller. Mas não entendi a máscara da aproximação. Uma promiscuidade em disfarce de liberdade que provém da masculinidade de séculos de dominação. Encarei essa disfarçada figura e ela se foi com medo de mim. Então, não era H. Miller!

Em passos largos caminhei até o restaurante, pois era hora de sentar-me a mesa com seu Alberto. Todos os dias no almoço juntos em nosso silêncio que perdura com o adentro de sua invisibilidade que resgatei através de Hades. 

Senti que o seu Alberto estava eufórico no silêncio. Não era uma habitualidade, mas ignorei como um cotidiano almoço; até que ele me disse: – “você é…”. Disse-me tantas coisas que poderia transcrever páginas e páginas. Ouvi e quando procurei os seus olhos não consegui enxergar.

Ninguém enxerga os intensos gestos do seu Alberto.  Ele é tão complacente que chego a envergonhar-me diante dele. E sei, que é nesse momento que eu não o enxergo. Nem mesmo escuto os insurgentes a mesa. No instante que pensei isso, ouvi:

Lia eu a lerei por todos os momentos que me subornei; lerei como sempre desejei e nunca fiz.

Não ergui os olhos, nem mesmo dei importância a fala adjacente, embora tivesse reconhecido o som de sua voz. Encarei como uma voz do além, uma alucinação por ter escapado com vida do Deus da Carnificina.  Dei por mim ter ouvido uma fala inexistente, então prendi novamente a respiração; durante esse processo passei a ouvir inúmeras vezes o seu Alberto dizer: É um prazer Henry Miller… É um prazer Henry Miller… É um prazer Henry Miller… Como um disco arranhado.  

Voltei a respirar! E ouvi pela última vez: “- é um prazer Henry Miller!”  Nesse instante vi os olhos do seu Alberto e vi “o segredo dos seus olhos”, H. Miller!

Referências:

(*) O Segredo dos Seus olhos. Direção Juan José Campanella. Espanha/Argentina, 2009, 127 min.

Sobre o artista Nelson Leirner http://www.nelsonleirner.com.br/

CARDOSO JR., Hélio Rebello (Org.) Inconsciente Multiplicidade: conceito, problemas e práticas segundo Deleuze e Guattari. São Paulo: Editora UNESP, 2007.

MILLER, Henry. A hora dos assassinos (um estudo sobre Rimbaud). Trad. Nilton Persson. Porto Alegre: L & M, 2003.

Deus da Carnificina. Direção Roman Polanski.  Carnage, Polônia/Alemanha/França/Espanha, 2011, 80 min.