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Série Releituras Visuais e Breves Comentários III: O Realismo de COURBET e a Releitura de Antonio Peticov

2 maio

por Gisele Miranda

Jean Désiré Gustav COURBET (1819-1877) veio de uma família rural bem estabelecida. Iniciou o curso de Direito, mas abandonou para estudar desenho de maneira independente até criar o seu próprio Realismo – da construção do discurso e da prática. 

Courbet foi fascinado pelo Barroco Laico de Frans Hals (1580-1666), Rembrandt (1606-1669) e Rubens (1577-1640). E se curvou ao retratista do Barroco Religioso Diego Velázquez (1599-1669).

A pintura de Courbet foi anticlerical e tinha uma técnica de trabalho peculiar a Caravaggio (1571-1610) – o uso da faca na pintura. Também fazia uso do polegar e irritava os críticos da metade do século 19, com a grandeza de sua assinatura, o tamanho e a energia de suas telas, considerados provocações para os críticos conservadores. (Schapiro, 1996, 124-125)

Jean Désiré Gustav COURBET (Ornans, França, 1819 - La Tour-de-Peilz, Suiça, 1877), O Ateliê do Artista,1855. Óleo sobre tela 359  x 598 cm. Museu D’Orsay, Paris.

Jean Désiré Gustav COURBET (Ornans, França, 1819 – La Tour-de-Peilz, Suiça, 1877), O Ateliê do Artista,1855. Óleo sobre tela 359 x 598 cm. Museu D’Orsay, Paris.

O Ateliê de Courbet tem a amplitude e a força do Realismo construído. Um autorretrato compartilhado com inúmeras releituras: ao lado direito com amigos (intelectuais da época) e seus pais. Ao lado esquerdo a miscelânea  de culturas e de quão popular era em seu ofício com crianças, cachorro e a representação da Verdade (a mulher).

Na Releitura de Antonio Peticov, intitulada Pintando com a Verdade Olhando, 2018, há um recorte do ateliê de Courbet. Esse recorte tornou-se o ateliê de Peticov, bem mais intimista, mas onde os artistas se confundem em tempos distintos.

O filho de Antonio Peticov, Pedro Antonio, retratado criança (hoje adulto) ativa toda a esperança no aprendizado, no exercício diário. O ateliê também é representado pelo gato “gordo” e pela saudosa akita, a Yuke.

A representação da mulher (Gisele Miranda/amiga teórica) com o artista autorretratado foi um convite  incorporado nas entrelinhas, a partir da História da Arte e de muitas aulas ministradas sobre o Realismo. E da mesma forma, o conhecimento sobre o artista Antonio Peticov, sua biografia e sua obra.  Agraciada por representar essa fusão de temporalidades e de movimentos artísticos – de todo o processo – da fotografia, do desenho à pintura.

Antonio Peticov (Assis, SP, Brasil, 1946 -) Pintando com A Verdade Olhando, 2018. Acrílica sobre tela 140 x 120 cm. Série Releituras.

Antonio Peticov (Assis, SP, Brasil, 1946 -) Pintando com A Verdade Olhando, 2018. Acrílica sobre tela 140 x 120 cm. Série Releituras.

Revivi o ateliê de Courbet e aproveitei a escada cósmica de Peticov para conversar com Charles Baudelaire (1821-1867), Champfleury (1821-1889), Proudhon (1809-1865), Alfred Bruyas (1821-1876), seus pais e mais dois amigos que na pintura estavam à sua direita.

Baudelaire está lendo um livro; avisei a Baudelaire que o representaria intelectualmente, junto a Peticov, o filho, o gato e o cachorro, os esquadros, a escada cósmica, a ampulheta e os livros.

(*) Nota: Esse texto foi realizado no Instituto de Arte e Cultura Antonio Peticov https://www.peticov.com.br/

Referências:

AMARAL, Aracy. Arte para que? São Paulo: Nobel/ Itaú Cultural, 2003

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Tradução Denise Bottmann & Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e Persuasão: ensaios sobre o Barroco. Tradução Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

BURKE, Peter. (Org.) A Escrita da história: novas perspectivas. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Paulista, 1992.

GOMBRICH, Ernst H. J. História da Arte. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão; Irene Ferreira & Suzana Ferreira Borges. 2 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992. (coleção Repertórios)

SCHAPIRO, Meyer: A Arte Moderna séculos XIX e XX. Tradução Luiz R. M Gonçalves. São Paulo: Edusp, 1996.

Significa- ação

11 maio

Fotografias de Cícero Leitão

(Curadoria e texto de Lia Mirror)

 

Quando as borboletas começarem a partir é sinal que alguma coisa aconteceu… talvez os ventos… remoinhos…Talvez a chuva… tempestade. (Cícero Leitão)

 

 

Cícero partiu. Mas retornou para fotografar reminiscências de Juá, no município de Itaueira, Piauí. Ao passar por ali viu dois passarinhos.

Cícero Leitão, Meninos, 2010/2011

– “muitos passaram, mas eu passarinho” (disse o mais travesso reverberando Mário Quintana)

A passarinha maior fitou aquele olhar que diz, como outrora disse, a menina afegã, que Steve McCurry registrou em 1985. (1)

A lavadeira do rio Itaueira canta e se encanta com Cartola!

“…Ensaboa mulata, ensaboa
Ensaboa. Tô ensaboando…
Tô lavando a minha roupa!…” (2)

Cícero Leitão, Lavadeira do Rio Itaueira, 2010-2011

Quando se olha por todos os lados… seu Benvindo sorri e pica o fumo como os Caipiras de Almeida Jr. Mesclando o final do século 19, sob tintas e pincéis; e sob o olhar em preto e branco do século 21.

Cícero Leitão, Bem-vindo! 2010-2011

Meus olhos  (agora ) são seus olhos!

Dona Coló em seus vividos 97 anos recita Cora Coralina: Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.

Cícero Leitão, Dona Coló, 2010-2011

Lá em Itaueira “passou um sábio. Depois um soldado e mais tarde um homem do povo. Sucessivamente ocuparam o horizonte um poeta, um leão, um tigre e um pequeno redemoinho de areia… ” (Klintowitz, Significação, 1982)


(2)  Cartola com sua filha Creusa cantam Ensaboa


Série Cartas de leitores I: Gontran Netto, o Diógenes da pintura brasileira

2 mar

Por Maria Aparecida Correa Paty (Paris/FR)

(poetisa e tradutora)

 

Não creio que se possa conhecer Gontran Netto sem se interrogar sobre o sentido de sua própria vida. Esse homem de uma simplicidade radiante (bouleverse) faz de sua vida uma arte – vivendo cada dia com estilo que transmite à sua pintura a seiva, a força, o sangue da cor da vida.

Arte e vida se casam como em uma língua e o paradigma ao realizaem no sintagma a vida em potência que  torna-se ato concatenado em uma explosão de luz.

Cores e formas (épousent) na linha de um horizonte provável, onde a significação dá a luz literalmente.

Diógenes Laércio afirmou que Platão teria dito: se os velhos pudessem correr, eles também poderiam fazer filosofia. E eles não podem. Na Grécia morria-se muito jovem pela paixão heróica. E a paixão basta experimentá-la para se dar conta que, se ela atesta um desejo infinito de vida leva-nos à fadiga e à impotência da morte.

Correr para Gontran Netto, aos seus 81 anos, é talvez, entreter o movimento. Movimento do corpo que acende o espírito. Do espírito que capta a dança dos corpos, pés e mãos tão firmemente implantados a terra em ação permanente: momentum.

Arranjos em bouquets de pesados ajuntamentos de cana de açúcar trabalham o homem. A força vem da terra e do homem que nela vive e cria; e da vida que seu olhar ilumina quando ele busca esse horizonte provável e se choca: o corpo inteiro treme; os dedos imantados nos campos de trabalho mundo afora e o olhar bravio desafiando a cerca de arame farpado, signo de limites, fronteiras e perversidades. Sem nome, o olhar emite a energia da luz opaca, quase branca, concentração de todas as cores que explodem nesse apelo irresistível do ´Não´, como nos lembra Carlos Drummond de Andrade.

É a força que dos pés às mãos constrange os dedos a encerrar como entre os dentes, os pontiagudos (barbelés) arames farpados que protegem as propriedades.

Gontran Guanaes Netto (1933-2017), série Les Damnés de la Terre, 2000-2001

Em nossos dias dizem que fronteiras não existem mais, e que o último muro caiu em 1989. A arte tornou-se biotecnologia, transumana. As modas sucedem, mas Gontran Netto continua a correr e a entreter o movimento do mundo em que todos os Raimundos continuam a dançar em comunidade anônima – enxadas, pás e cestos de colheita – o olhar fixo nas cercas de arame e no sonho de Diógenes, o filósofo: liberdade.

O encontro nas cores: Gontran Guanaes Netto e Julio Le Parc

13 ago

Por Gisèle Miranda

O poema Cores da Esperança foi escrito por Julio Le Parc (1928-), em 2002, para Gontran Guanaes Netto (1933-2017), em seguida, foi apresentado por Guanaes Netto dedicado a Le Parc – uma inversão na escrita com a abdicação do ‘eu’. Postura construida ao longo de suas particiações em Coletivos Artísticos com comprometimento político em prol do ‘outro’.

Le Parc tornou-se cidadão de dupla nacionalidade franco argentino em função de suas atividades artísticas. Anterior aos trabalhos e amizade com Gontran, Le Parc recusou-se a participar da Bienal de Arte de São Paulo, em 1964, em protesto ao golpe militar no Brasil.

Gontran tornou-se franco brasileiro. Depois de algumas prisões conseguiu sobreviver e partiu para o exílio, em 1969. Em Paris conheceu seu amigo de Cores da Esperança. Lá, foram membros fundadores da Brigada Internacional Anti-fascistas.

As cores (Luz) da Esperança

Quando o ser humano vem a ser cores,

Quando a cor vem a ser forma humana,

Quando o ser humano este ligado à terra,

Quando o camponês da terra faz brotar seus frutos,

Quando estes frutos são usurpados,

Quando esta usurpação gera a miséria,

Quando esta miséria gera revolta,

Quando esta revolta é reprimida,

Quando esta repressão obedece a uma ordem,

Quando esta ordem é a ordem dos outros,

Quando estes outros acrediam ser proprietários do mundo,

Quando este mundo se mundializa em detrimentos da maioria,

Quando esta maioria, eles os camponeses, vem a ser os  ‘Damnés de la Terre’.

Quando Netto (Le Parc) com sua caixa de cores está presente,

Quando eles ‘ Les Damnés de la Terre’, estes camponeses (desaparecidos) brasileiros (argentinos), mesmo na pior situação, carregam neles, extremamente e internamente suas cores,

Quando suas cores são aquelas da dignidade,

Quando suas cores são aquelas da luta,

Quando suas cores são aquelas da esperança,

Quando suas cores são aquelas da alegria que não se deve apagar,

Quando na caixa de cores de Netto (Le Parc) passa a ser ativa,

Quando suas cores passam a ser militantes, mas autônomos, elas fazem sua revolta,

Quando esta revolta em cores vai ao encontro da justa revolta ‘ Damnés’,

Quando a mesma não passa pelo miserabilismo, nem pela obscura e sombria derrota, nem pela prostração e aniquilamento, mas sim

Pelo desejo e o direito à vida – As cores estão presentes,

Quando estas cores estão presentes no olhar de Netto (Le Parc), no seu coração, na sua primeira sensibilidade, na sua cabeça

Que põem em ordem, as cores passam a ser forma e fé no homem,

Quando tudo que está ancorado no mais profundo de seus ‘ Domnés de la Terre’ e no Netto- Le Parc, Pintor – homem, é evidente que venha a ser figuração,

Quando estão pela intermediação de Netto-Le Parc, com esta forte presença – cor, nós não podemos nos esquivar e nós somos também fortemente envolvidos,

Quando esperança não desaparece, quando a esperança cresce os quadros de Netto permanecem.

Julio Le Parc. Série 14-5E. Acrylico sobre lienzo 171 x 171 Cm, 1970.

Gontran Guanaes Netto. Os donos da terra (Série de doze pinturas dedicado a Le Parc, 2002-2011. Óleo sobre tela, 100 x 100 cm
2011. Óleo sobre tela, 100 x 100 cm.

Série Paschoal Carlos Magno II: “Sol sôbre as palmeiras”

12 jul

Por Gisèle Miranda

Vou Paschoalando pelas ruas… Dom Quixote aparece sem auréolas, simplesmente como um ser humano, cuja justificação – é preciso dar-lhe alguma? – é de não ser unilateral, mas de alma que se renova com a fôrça universal de cada sonho. (MAGNO, P. C., 1969)

Paschoal ou Lúcio?

“Sol sôbre as palmeiras”(1962) foi o segundo livro de Paschoal Carlos Magno; é um romance histórico e autobiográfico com espacialidade delineada pelo morro de Santa Teresa ou morro Paula Matos, na época, bairro de ostracismo da cidade do Rio de Janeiro.

Lúcio – personagem central. Seu Chico, o pai, autodidata e criador do teatro da família Carlos Magno. Ele lia para os filhos e descrevia o que imaginava ter visto. Quando titubeava, no dia seguinte retornava ao assunto após pesquisas.

Dona Josefa, a mãe fervorosa em sua religiosidade que explicitava nos cômodos da casa imagens de santos católicos. No dia a dia, a compra fiado do pão, inadimplência dos alugueres, mas a cumplicidade junto ao marido à compra de muitos livros e, até: de Madona à Duse – sementes do Teatro Duse:

Seu pai é doido… substituir a Madona por um retrato de atriz… – Não o leve, mamãe… Veja: (Lúcio apontava à Duse) – tem um ar de Madona. E nessa noite Lúcio não se espantou de encontrar acesa a lamparina junto do retrato de Eleonora Duse-Checchi (1858-1924). Nessa noite e daí por diante. (MAGNO, 1922, p. 20-21)

Elenora Duse-Checchi, s/d

Em 1947, a atriz Henriette Morineau durante a famosa Concentração do Teatro do Estudante, sequenciou a crença do Teatro do Estudante celebrando e glorificando a madona Eleonora Duse: …com os olhos enevoados… abriu a bolsa e tirou uma nota que depositou no chão de veludo escuro do altar. (Jornal Correio da Manhã, 31 jul., 1947.)

Elenora Duse-Checchi, 1922.

A atriz Eleonora Duse esteve no Brasil, em 1885. A cidade do Rio de Janeiro foi a primeira de sua carreira internacional.  Mas o grande público da “prim´attrice assoluta” ainda não existia nos trópicos. Ressentida com poucas palmas, cadeiras vazias e, apesar das notas de jornais de alguns admiradores, deixou registrado:

um grande, grande teatro… murmúrios ininterruptos na platéia e nos camarotes, do princípio ao fim da peça… eles não conhecem de minha voz senão uma parte infinita e miserável, sem falar das dificuldades da língua (minha doce língua italiana, ao lado dêsse português tão rude, e do brasileiro ainda pior… (trecho da carta enviada por Duse à Mathilde Serao; carta publicada em A vida de Eleonora Duse, de Max Reinhardt)

Duse retornou ao Brasil, em 1907. Desta vez, ovacionada pelo público, porém mais amargurada do que nunca. Sequer concedeu entrevistas, isolando-se até dos amigos, atitude que encolerizou Arthur de Azevedo:

Duse, a inacessível Duse, que fugindo a reportagem e aos Kodaks, torna-se quase um mito… neurastenia? aborrecimento?… vaidade? orgulho? ou desprêso de Deusa para com os míseros mortais?  (ABREU, 1958, p. 15)

Quem foi Eleonora Duse para Paschoal Carlos Magno? Não apenas a capacidade imensurável às interpretações, mas a figura imponente de mulher, sua trajetória de vida determinada pelo mambembe – em qualquer lugar e em qualquer hora. Princípio este que articulou as bases do Teatro do Estudante do Brasil, as Caravanas e Barcas da Cultura, Teatro Duse e Aldeia de Arcozelo.

Para Paschoal, as reações adversas de Eleonora Duse no Brasil deveu-se a pressão de um momento pessoal desesperador – do falecimento do ator de sua companhia (e também seu amante esporádico) Arturo Giotte, acometido de febre amarela pouco depois de desembarcar no Brasil em sua primeira tournée. Além, é claro, da pouca receptividade do público brasileiro.

Referências

ABREU, Brício. Eleonora Duse no Rio de Janeiro (1885-1907). Rio de Janeiro: MEC, SNT, 1958.

MADEIRA OU IGGNACIO, Gisele. Paschoal Carlos Magno (1906-1980): mosaico de um culturalista. São Paulo: 2000. Tese (doutorado em História) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.

MAGNO, Orlanda Carlos. Pequena história do Teatro Duse. Rio de Janeiro: SNT, 1973.

MAGNO, Paschoal Carlos. Tempo que passa. Rio de Janeiro: s/ed., 1922.

_____________________. Sol sôbre as palmeiras. Rio de Janeiro Letras e Artes, 1962.

_____________________. Não acuso nem me perdôo: diário de Atenas. Rio de Janeiro: Record, 1969.

_____________________. Poemas do irremediável. Rio de Janeiro: Cátedra, 1972.

_____________________. Tudo valeu a pena. m.s, s.d.

REINHARDT, Max. A vida de Eleonora Duse. Rio de Janeiro Livraria José Olympio Editôra 1940.

Série Emmanuel Nery III: Bar Alpino em Orelhas sobre a mesa

27 abr

por Gisele Miranda

Emmanuel Nery (RJ, 1931-RJ, 2003), Orelhas sobre a mesa, acrílico s/ tela 55 x 46 cm, 1986.

Orelhas sobre a mesa reforça o relato pictorial do artista sobre a cidade e a transforma em possibilidades de exprimir a tensão entre a racionalidade e o emaranhado das existências humanas. (Calvino, 1991)

Na pintura, os excessos da incomunicabilidade através de duas figuras deformadas pela falta de diálogo; o raciocínio confunde-se com a força bruta: “facas sobre a mesa… não orelhas sobre a mesa…” – ato falho de Emmanuel Nery. (1) Facas ou orelhas?

A incomunicabilidade da fala e da escuta se estende à inexistência do entorno. Nas cores rosa e azul por Goethe e Kandinsky: a busca teórica de suas escolhas. Para ambos a junção da matriz vermelho que em suas variações resultam em rosa e lilás; com o azul, o resultado da violeta, que variavelmente chega ao rosa em movimento concêntrico.


[1] Emmanuel Nery em 30 de junho de 1993; entrevista à Gisele Miranda.

Série Emmanuel Nery II: espaços de percepções

26 abr

Por Gisèle Miranda

 

Em 1967, Emmanuel Nery, então com 36 anos pintou Bar Alpino, outrora, lugar de memória e história. Bar Alpino foi uma exceção, pois de 1967 até 1973, quase não pintou. Vivia para as atividades de relações públicas e jornalista na área de economia.

Na pintura, a criança Emmanuel remete aos encontros com a sua mãe, a poetisa Adalgisa Nery, provavelmente nos fins de semana quando saía do internato Frei Fabiano.

Mas, se toda a obra de arte é filha de seu tempo e, muitas vezes, mãe dos nossos sentimentos (Kandinsky, 1990: 27), algo do silêncio entrecortado deve ter motivado a exceção, afinal, era o auge da ditadura militar no Brasil, final do governo do Gal. Castello Branco (1964-67) e o começo do governo do Mal. Costa e Silva. (1967-69)

Talvez, houvesse por parte do menino Emmanuel, a sensação de pouco espaço para expressão ou pouco tempo para estar com sua mãe. Essa lembrança veio justamente em um período em que se sentiu enfraquecido para produzir, para criar na pintura.

A representação do Bar Alpino como lugar de memória, na cidade do Rio de Janeiro, tem o privilégio de ser o lugar onde o usuário inscreve história… e preserva a memória do seu repertório coletivo. (Lynch, 1988: 122) É um vulcão em erupção de memórias e significações que exprimem seus modos de vida, diferenças sociais, embates políticos, olhares de uma sociedade complexa.

A mãe observa o filho comer em um jogo de espelhos. Um labirinto ou um túnel do tempo?

Emmanuel Nery (RJ, 1931-RJ, 2003), Bar Alpino , óleo s/ tela 55 x 48 cm, 1967.

O verde que decorre da mistura do amarelo (excêntrico) com o azul (concêntrico) – da cor quente para a fria – remete ao distanciamento, mas com um quê de satisfação: olho e alma repousam nessa mistura como se fosse algo simples. (Goethe, 1993: 135)

O Princípio da Necessidade Interior, fundamento teórico de Kandinsky, ressalta a base na produção de uma obra, desde a personalidade do autor, a época que desponta na busca da própria linguagem, da fala política, corroborando à técnica apurada de Emmanuel Nery, visto no triângulo e no amarelo (teoricamente o triângulo é sempre amarelo).

Para exemplificar essa triangularidade, recorro a geometria do antigo Egito pela doutrina religiosa dos princípios da Trindade (Osíris, Ísis e Horus), associados diretamente à luz solar ou ao Deus Sol ´Rá´. (Carvalho, s/d, p. 229) Ou seja, o estudo de cores e formas associado às reminiscências, do racional ao emocional.

Mesmo que  houvesse a distância ou a incompreensão comunicativa entre mãe e filho, o ambiente reforça o refúgio, em um abrigo de segredos e de silêncio.

“…Tempo real –

De mãe e filho.

Em tempo –

Sem qualquer tempo –

Durante algum tempo irrisório,

Encontro.” (1)


[1] Parte da poesia Tempos de Emmanuel Nery, s/d.

Série Emmanuel Nery I: Ismael Nery “em três tempos”

24 abr

Por Gisele Miranda

 

Emmanuel Nery nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 3 de julho de 1931 e faleceu na mesma cidade, em 3 de julho de 2003. Artista visual e poeta, foi aluno de Cândido Portinari (1903-1962), Alberto Guignard (1896-1962), De Chirico (1888-1978), Salvador Dali (1904-1989), Diego Rivera (1886-1957), Frida Kahlo (1907-1954), Norman Rochwell (1894-1978). Filho caçula do Surrealista brasileiro Ismael Nery (1900-1934) e da poetisa Adalgisa Nery (1905-1980).

Em 1988, no MASP, sob escolha a dedo de Pietro Maria Bardi (1900-1999), quarenta telas foram expostas. Foi durante essa exposição que tive o prazer de conhecer Emmanuel Nery.

Seu trabalho figurativo crítico referencia alguns de seus mestres – dos pincéis às longas conversas sobre o multifacetado mundo das artes. Houve ênfase de imagens surreais, elo vertiginoso de três de seus mestres De Chirico e Salvador Dali. Mas, e Ismael Nery?

Com seu pai o vínculo afetivo foi de ausência, marcado pelo pouco tempo de convivência, já que Ismael morreu quando Emmanuel tinha apenas 3 anos. Seus desenhos e pinturas efetivamente tem algo em comum – de pai para filho? Melhor dizer, o filho resgatando o pai em gestos e expressões exteriores com segredos de atitudes interiores. (VOVELLE, 1991:31) Caso explícito da obra “Ismael em três tempos”, donde questões de autoria, canonicidade e interpretação tecem três momentos conhecidos de Ismael Nery, ou seja: vida, morte e consagração póstuma. (1) A obra “Ismael em três tempos” teve um ar de acerto de contas à memória de seu pai.

Emmanuel Nery (RJ, 1931-RJ, 2003), Ismael em três tempos, acrílico s/ tela 95 x 85 cm, 1986.

Os três momentos distintos foram alicerçados pelo fundo azul, conhecidamente uma cor profunda, circular e concêntrica com tonalidade para o roxo; fruto dos grandes mestres? Fruto de reminiscências da infância, a partir de um vidro de biscoitos que sua avó levou quando foi visitá-lo no internato Frei Fabiano. Momento este revigorado na realização da obra.

E, para aquém da obra visual, o poeta Emmanuel Nery declamou a morte e a consagração póstuma de seu pai:

 

“… Pai, nunca tive.

Mas foi sobre-humano

Assim eu o fiz:

Moldado no perfeito.

Cheio do bom.”[2]



Ou,



“Viver meus filhos

Justifica viver.

Conhecer meu pai

Justifica morrer.”[3]

 

Ismael Nery, o pai, também declamou às vésperas de sua morte, a necessidade de ser poeta:

 


“Todo homem recita um poema nas vésperas da sua morte – a humanidade recitará também o seu nas vésperas da sua, pela boca de todos os homens que nesse tempo serão poetas.” (4)






(1) Nery, Ismael. Parte do Testamento Espiritual, novembro de 1933; Catálogo da Dan Galeria, 1991.

Ismael Nery nasceu em Belém (PA) em 1 de julho de 1900; mudou com seus pais para a cidade do Rio de Janeiro quando tinha 2 anos.  Ismael sempre gostou de desenhar, desde muito cedo; logo fez Escola de Belas Artes e aperfeiçoou-se na Europa. Trabalhou como arquiteto-desenhista e desenvolveu um sistema filosófico denominado Essencialismo, baseado na abstração do tempo e do espaço, na seleção e cultivo dos elementos essenciais à existência, na redução do tempo à unidade. (Catálogo Dan Galeria, 1991). Suas influências na pintura foram Marc Chagall, Picasso, Max Ernst e Klimt. Ismael Nery não vendeu nenhum de seus trabalhos em vida. Faleceu em 6 de abril de 1934, na cidade do Rio de Janeiro. É conhecida a sua visionária história de querer morrer aos 33 anos, como Cristo e como seu pai, o médico Ismael Nery

 

[2] Parte do poema inédito `Órfão de mãe´, de Emmanuel Nery, s/d.

[3] NeryEmmanuel. Forças Contrastantes. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. Poema Antídotos, p. 80.

[4] NeryIsmael. Parte do Testamento Espiritual, novembro de 1933; Catálogo da Dan Galeria, 1991.

´O Gigante´ de GOYA

2 jan

Por Gisele Miranda

 

Ao

Amor

e à

Guerra

Francisco GOYA (Fuendetodos, Espanha, 1746 – Bordéus, França, 1828)  O Gigante, c. 1818. Água forte e buril, 28,5 x 21 cm. Museum of Modern Art, New York.

Designado: ´O Gigante´! Ninguém conhecia sua estatura ou peso. Goya fez um mortal que se tornou imortal nas proporções de sua potência. Na poesia de sua arte retratou-o ardorosamente amado. Amado gigantemente. Amado para ser na sua eternidade, uma imagem indestrutível.

– Por quantas guerras mais? Qual guerra?

O pintor da corte Espanhola foi a forte expressão do Romantismo. O século 19 deve muito a Goya que na aparente estabilidade profissional empunhou seu Realismo Social e Político sobre o amor e a guerra; dor como parte intrínseca. Naquele momento seu tempo expirava. Rasgou o Barroco e os olhos cegos de sua aristocracia. Ele cavou o Romantismo e cruzou mares e movimentos em um historicismo ladeado pela Modernidade.

Sólidas estruturas para o tão só e desnudo Gigante de Goya! Que frágil e duro corpo coloca-se à nossa frente?! Era o desterro sem o gozo do perto: solitário!

Lá está o Gigante na forma disforme da opulência de seu corpo ou da imaginação de seu povo?  Como pode estar tão solitário com toda a devoção à sua grandeza?

O tato e o afeto não se aproximavam. Havia reverência e distanciamento. Muitos gritaram seu nome em coro, uníssono. Goya já estava surdo!

Muitos choraram por temerem perdê-lo e por fim, a derrocada. Mas Goya não permitiu que a fúria do tempo ousasse esquecê-lo.

O que diz esse olhar querendo ser olhado? O corpo almejando ser tocado? Essa boca como a de um mortal desejando ser beijada. Despudorado esse sexo comum ser amado!

–         É divino ou poesia?

–         É medo ou poesia?

–         É dor ou poesia?

Do alto mar, terra à vista.  A lua é um quarto crescente. A sensação é de vazio, enquanto estava a seus pés a fêmea cidade! Por ela, ´O Gigante´ lutou até cair nos braços da morte.

Se encarada a versão mitológica, ´o gigante´ é o monstro, é o cruel; ciclope, minotauro, monstros submarinos shakespereanos. Meio homem, meio animal.  Mortal e imortal. De Goya, a imagem de Saturno devorando sua própria cria.

Goya (Fuendetodos, Espanha, 1746- Bordéus, França, 1828), Saturno devorando seu filho, 1815. 146 x 83 cm. Museu do Prado (Madri/ ESpanha)

Não por acaso que é unanimidade entre os críticos e biógrafos de Goya confessar a dor como base para ousar escrever sobre este artista e sua arte. Confessarei apenas que:

´Eu vi´, ´O Gigante´ de Goya! Tal qual o próprio Goya respondia ao ser indagado sobre o que pensava ao criar.

Referências:

V. Tb. versão “Saturno” por Peter Paul Rubens (1577-1640)

Francisco GOYA, nasceu em Fuendetodos (Saragoça – Espanha), em março de 1746, e faleceu em Bordéus (França), em abril de 1828.

Final do século 18 e início do século 19, o Romantismo aconteceu na pintura histórica e na ressurreição Gótica ou Neo Gótico (verticalização das igrejas; a primeira fase Gótica se deu entre os séculos 13 e 15. O Romantismo deu sinais de seu esgotamento em meados do século 19.

O Romantismo tem uma face demasiadamente histórico-filosófico via tese de doutorado de Walter Benjamim (1917-1919) – a partir dos pensadores Novalis e os irmãos Schelegel-  ascendeu a discussão sobre ´cartografia dos conceitos´, através do Romantismo Alemão – tais como: ´aura´, ´modernidade´, ´reminiscência,, ´reflexão´ (via conexão e não continuidade) entre outros. A primeira fase desse Romantismo: entre ´a religião e a revolução´, ´crítica e crítico´, ´ideia e ideal´, ´prosa e poesia´. Tb. – ´obra inacabada´-, ou seja, ´ o devir´; conceito conduzido com traquejo neste século pelos filósofos Deleuze & Guattari.

Na perspectiva histórica do Romantismo encontram-se também: autonomia das nações; povos com suas realidades geográficas, históricas, religiosas e lingüísticas; experiência vivida e à genialidade artística. No Brasil dos 1800, há forte influência dos trabalhos de Goya, Delacroix, Turner, Rodin sobre a arte de Araújo Porto Alegre, Rugendas e August Miller.

Sugestão: Sombras de Goya, 2006, dirigido por Milos Forman e roteiro de Jean-Claude Carrière, com atuações de Javier BardemNatalie Portman.

Também cabe lembrar a exposição GOYA: as séries completas das gravuras (coleção Caixanova), que ocorreu em abril/maio de 2007, no MASP, sob a curadoria de Teixeira Coelho.

Os séculos antecedentes ao Romantismo Histórico, ou seja, séculos 17 e 18. Ver ARGAN 1992: as divisões dos conceitos Clássico X Romântico. (incluso Romântico do Medievo, do Românico ao Gótico e Barroco em oposição ao Clássico e Neoclássico.

ARGAN, G. C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

COLI, J. O sonho da razão produz monstros. In: A crise da razão. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. p. 301-312.

BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 1999. 2ª ed. Tradução, prefácio e notas: Marcio Seligmann-Silva.

CARRIÈRE, J.C. & FORMAN, M. Os Fantasmas de Goya. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

GOMBRICH, E. H. História da Arte. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.

GUINSBURG, J. (Org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005.

HUGHES, Robert. Goya. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

LÖWY, Michel. Romantismo e messianismo: ensaio sobre Lukács e Walter Benjamim. São Paulo: Perspectiva, 1990. Tradução: Myrian Veras Baptista e Magdalena Pizante Baptista.

LÖWY, Michel. Messianismo e revolução. In: A crise da razão. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. p. 395-408.

Revista BRAVO! GOYA. São Paulo: Editora Abril, 2007. Ano 10, n. 116, p. 26-37 (abril).

TOMLINSON, Janis. Francisco Goya y Lucientes (1746-1828). New York: Phaidon Press Limited, 2006.