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Série Falésias IV: A alegria sem a fala ou os desaparecidos da escrita

16 mar

Por Lia Mirror & Gisèle Miranda

 

A Alegria de Emma[1] tem um intrínseco elo com o Futuro (que) dura muito tempo de Louis Althusser. Emma era uma versão feminina alemã de “O garoto selvagem” de Truffaut com condimentos do dinamarquês Lars Von Trier em os “Idiotas“. Althusser era um filósofo marxista de carreira universitária. Ele clamou a solidão de seu isolamento teórico e o risco solitário diante do mundo, além de percorrer de Rousseau a Derrida para a intervir como filósofo na política e, como político na filosofia. O futuro dura muito tempo foi escrito alguns anos depois do estrangulamento de sua esposa, Helène, em 1980.

Os porcos degolados por Emma foram cuidados e amados até os oito segundos da morte. Da mesma forma, ela fez com o seu amado, um doente terminal – a degola – em apenas, oito segundos. Nenhum som e nenhuma fala. Emma e Althusser agiram com as mãos, da faca à caneta; do silencio à escrita. Os papéis foram sendo esculpidos e as imagens sobrepostas.

Rachel Korman, big pig, 2008, digital photograph 50 x 70 cm.

Será que o desaparecido de Foucault reapareceu na escrita necessária de Althusser e de alguma maneira impronunciado com seu parricida Pierre Rivière, o degolador? Rivière vem das primeiras três décadas do século 19, abrindo discussões na medicina psiquiátrica e nos conceitos da justiça em perspectivas políticas de meados do século 20. Ele degolou ou amputou a fala da mãe e dos irmãos? E sem a sua própria fala, construiu um memorial justaposto à escrita por uma memória minuciosa.

 

Gontran Guanaes Netto (1933-2017), escrita/desenho s/ papel: “Para Gisele neste inicio de trabalho”, dez. 2002.

Dos relatos aos lapsos do escritor Lima Barreto em seu Diário do hospício e o cemitério dos vivos, o enredo de um tempo que também parece durar muito, precisamente porque foi imposto por uma limpeza social (policial e higienizadora) marcadamente pelas primeiras décadas do século 20 no Brasil. Lima Barreto não matou, mas viveu personagens em meio aos desaparecidos por assassinatos, esquizofrenia, alcoolismo, vadiagem, entre outros. Sua escuta era intensa e sua escrita verteu-se ao ensejo do necessário.

Não me assustavam os criminosos; escreveu Lima Barreto, mas a candura, a inocência e a naturalidade; a punho e em pedaços de papéis registrou seu cemitério dos vivos ou sua analítica versão de as Recordações da casa dos mortos de Dostoiévski. Assim, em tal estado de espírito, penetrado de um profundo niilismo intelectual. (p. 186-189)


(1) O Filme Emmas Glück (A alegria de Emma) de 2006 http://www.tvcultura.com.br/mostrainternacional/blog/33772 do diretor alemão Sven Taddicken baseado no romance de Claudia Schreiber.

Referências:

ALTHUSSER, Louis (1918-1990) O futuro dura muito tempo; seguido de Os fatos. Org. e Apres. Olivier Copet, Yann Moulier Butang; Trad. Rosa Freire d´aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

BARRETO, Lima (1881-1922). Diário do hospício e o Cemitério dos vivos. Prefácio Alfredo Bosi. Org. e Notas Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

FOUCAULT, Michel (Coord.) Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Trad. Denise Lezan de Almeida. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1977.

Série Falésias I: em seus tempos

1 dez

Por Gisèle Miranda

À beira da falésia – a história entre certezas e inquietude. De fato, há um aparador (in-visivel) para quem atinge a falésia. No ápice, entre a queda, o voo, o medo e a necessidade, podemos ouvir Chartier reverberando Foucault numa arqueologia das problematizações e de uma genealogia das práticas´.

Historiadores tem de manter um diálogo com os pensadores contemporâneos. Por quê? Para consolidar a consciência de sua inserção no mundo de hoje. (Maria Odila Dias).

E quanto aos riscos? Sempre há riscos. A obra resgatada dos sentidos ocultos, inimaginados, que escapam das camisas-de-força. (Jorge Coli)

Rachel Korman, Marginal (para / to Oiticica), 2010 impressão sobre tecido / print on fabric, 200 x 180cm.

Ao compartilhar a fugacidade do tempo em falésias precisamos ter alguma relação com o  passado, segundo, Hobsbawm (*). Ou, adaptar e testar modelos, teorias e conceitos e constituir a marca tanto do bom historiador como do bom teórico. (Peter Burke)

Jacques Le Goff desmistificou o próprio conceito de história, para então pensar a história como problema.  Surgiram: a história vivida, a história como ciência, história e memória, história social, entre tantas outras, além do próprio mito como recusa da história.

E por que não um ´rizoma temporal´ ? Entre a discussão do devir (Deleuze) e a condena da linearidade, há o que precisa ser tecido para o campo da reflexão e da ação. (Jacques Le Goff)

Eric Hobsbawm, em sua lúcida e quase centenária vivência apregoou a diferença de esquerda e direita – para lidarmos com o devir política. Ele interfere: a dúvida está procriando um núcleo de direita.

Mas, ´por que ´sermos ignorantes de nosso passado? Indagação que se adéqua ao silêncio de um Estado que num processo retro-ativo, foi legitimador da tortura. Silêncio. O tema silenciado, o tema que deseja ser esquecido. O tema que carece de diálogo ou o tema sem memória?

Estamos na companhia dos pensadores à beira da falésia e na inquietude do pensamento.

Referências (agenciamentos):

(*) Eric Hobsbawm nasceu em Alexandria, no Egito, sob o domínio britânico. Ele faleceu em 01 de Outubro de 2012,  aos 95 anos, em Londres, Reino Unido.

ALENCASTRO, L. F. et tal. Straumann (Org. ) Rio de Janeiro cidade mestiça. Ilustrações e comentários de Jean-Batiste DEBRET). São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

ALENCASTRO, L. F.  (Org. ) Coleção Dir. Fernado A. NOVAIS. História da vida privada no Brasil.  São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Vol. 2.

BLOCH, Marc L. B., 1886-1944. Apologia da história ou o ofício do historiador. Prefácio de Jacques Le Goff; apresentação à edição brasileira de Lilia Moritz Schwarcz. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

BURKE, Peter. (Org.) A Escrita da história: novas perspectivas. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Paulista, 1992.

BURKE, Peter. Inevitáveis empréstimos culturais. Folha de S. Paulo, São Paulo, 27 de julho de 1997. Cad. Mais!

BURKE, Peter. História e teoria social. Tradução Klauss Brandini Gerhardt, Roneide Venâncio Majer. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS, Ronaldo. (org.) Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

CARDOSO JR, Hélio Rebello. Para que serve uma subjetividade? Foucault, tempo e corpo. Revista Psicol. Reflex. Crit. vol. 18, n. 3. Porto Alegre, set. /dez. 2005. (http://ht.ly/3ieDw)

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre as incertezas e inquietude. Tradução Patríca Chittoni Ramos. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 2002.

CHARTIER, Roger. Do palco à página: publicar teatro e ler romances na época moderna – séculos XVI-XVIII. Tradução Bruno Feitler. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

CHARTIER, Roger. Cultura Escrita, literatura e história: conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jésus Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Tradução Ernani Rosa. Porto Alegre: ARTMED Editora, 2001.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade (Vol. II: O uso dos prazeres). Rio de Janeiro: Graal, 1984.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1981.

HOBSBAWM, Eric J. (1917-) Sobre história. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

HOBSBAWM, Eric J. (1917-) O novo século: entrevista a Antonio Polito. Tradução Claudio Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

HOBSBAWM, E.; Ranger T. (Org.) The Invention of Tradition. Cambridge, 1983.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão; Irene Ferreira & Suzana Ferreira Borges. 2 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992. (coleção Repertórios)

LE GOFF, J. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2001.

LE GOFF, J. São Luis: biografia. Rio de Janeiro: Record, 1999.

LE GOFF, J. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: UNESP, 1998.

PELBART, Peter Pál. Bárbaros e Ameríndios em MundoBraz! nov. 2010.

Globo News entrevista o historiador Eric Hobsbawm 2014.

Programa Roda Viva – TV Cultura: Roger Chartier, 2001; Conexões 2014 – Entrevista com o Roger Chartier – Completo