por Gisele Miranda & Lia Mirror
Dadá prevê seu fim e se ri disto. A morte é um assunto perfeitamente dadaísta à medida em que ela não significa nem o mais insignificante. Dadá tem o direito de se suprimir e fará uso disto quando for chegada a hora. (Huelsenbeck. In: Baitelo Junior, p. 28)
DADÁ É O CAOS, POIS A GUERRA É O CAOS. O Dadá surgiu durante a Primeira Guerra Mundial, em 1916. O Dadá é a dessacralização, a desestabilização, o contraditório e o infantil – dadá – são as primeiras palavras de uma criança com o mundo caótico e complexo. Dadá diz tudo e nada e tornou-se o mais confuso dos Manifestos experimentais da Vanguarda Modernista. Contudo, denso em seu processo na guerra e no pós-guerra.
O Dadá teve reinterpretações em todos os lugares por onde passou. Era o próprio contexto internacional da Primeira Guerra Mundial articulado com artistas de outros movimentos. A linguagem visual Dadá é nonsense – nada de sintaxe, ou seja, o oposto da poética Futurista, o que não impediu seus adeptos no Dadaísmo. As colagens Cubistas e Futuristas não condizem com as colagens do Dadá. O Dadá acolheu a Metafisica e a expurgou para o Surrealismo, em 1924, acrescido de utopia e onirismo. Também recebeu Puristas e Expressionistas da Bauhaus.
Em meio as polêmicas, antifamília, anticlássico, os jovens artistas são deserdados, expulsos do núcleo familiar, ou mesmo, os próprios artistas rompendo casamentos, abandonando filhos, eventos que resultaram em brigas, quebra quebra proposital e decorrente, ou seja, fora do controle, com prisões e processos. Esses mesmos jovens que foram ao front, mataram, foram feridos, morreram ou retornaram com os traumas inevitáveis do pós guerra.
Ora satíricos, ora aberrativos. Em todo esse processo experimental, nomes como Franz Jung, George Grosz, Max Ernst, Huelsenbeck, Hausmann, Francis Picabia, André Breton, Paul Éluard, René Crevel, Marcel Duchamp, Kandisnsky, Picasso, De Chirico, Hannah Höch, Marcel Janco, Phillipe Soupault, Louis Aragon, Sophie Taueubr, Paul Dermée, Celine Arnaud, Man Ray, K. Schwitters, os outros. Sim, todos beberam do Movimento Dadá – Dadá é nada, i.e., tudo. (In: Baitelo Junior, 1994, 13)
Do Cabaret Voltaire (Suíça, 1916) à Primeira Feira internacional Dadaísta (Berlim, 1920):
“O homem dadaísta é adversário radical da exploração… Portanto, mostra o homem DADAÍSTA como VERDADEIRAMENTE real diante da fedorenta mentira do pai de família e capitalista espreguiçando em sua poltrona.” (Hausmann. In: Baitelo Junior, p. 68)
A crise da cultura internacional acionada pela guerra colocou em xeque o objeto artístico ou o conteúdo contido na obra:
A verdadeira arte será antiarte… reduz-se assim a uma pura ação… Dadá não quer produzir obras de arte, e sim ‘produzir-se em intervenções (…) o Dadaísmo propõe uma ação pertubadora, com o fito de colocar o sistema em crise, voltando contra a sociedade seus próprios procedimentos… utilizando de maneira absurda as coisas a que a ela atribuía valor. (ARGAN, 1992, p. 356)
Marcel Duchamp ao colocar um bigode na Monalisa, contestou o valor comum. Nada pessoal ao grande Leonardo da Vinci, nem mesmo a Gioconda, mas os tempos são outros. No readymade, Duchamp brincou com os valores de objetos comuns como a roda da bicicleta, o mictório e os expôs a sociedade internacional para que refletisse sobre a guerra – quando tudo ao redor é morte ou quando o progresso se interliga a morte no discurso da guerra e na associação do desenvolvimento científico e tecnológico. Por isso, o Dadá rejeitou as técnicas anteriores. O importante é que houve uma ação questionadora e pertubadora que instigou a civilização a pensar e a começar do zero: a obra é mental.
Jovens, doenças, guerras e amores
Os jovens refugiados proclamaram o Dadá em território neutro. Mas o Dadá sobrepôs fronteiras porque todos sentiam-se refugiados durante a guerra. A juventude artística gritou em Paris – os jovens combatentes poetas, pintores, articuladores do pensamento libertário promoveram encontros, escreveram em revistas, montaram exposições e performances.
A tuberculose, doença infectocontagiosa, atormentou muitos jovens dos séculos 19 e 20, embora sua existência remonte oito mil anos. O termo só foi cunhado em meados do século 19, antes era conhecido como peste branca. Muitos procuraram os bons ares em um sanatório na Suíça, obviamente dispendioso, contudo, eficaz no isolamento de bons ares dos Alpes – os ‘sanatórios’ eram comumente conhecidos como hospitais para tratamento da tuberculose.
O poeta René Crevel era um tuberculoso. Foi para a guerra e sobreviveu para ser um Dadaísta. Abandonou os estudos sobre Diderot, e já bem doente cometeu suicídio. Ele era amigo de outro Dadaísta doente dos pulmões, o poeta Paul Éluard (Eugène Emile Paul Grindel).
Paul estava internado em um sanatório quando conheceu Gala (Elena Ivanovna Diakonova), a russa por quem se apaixonou durante o tratamento. Receberam alta e cada qual foi para seu lar, ela para a Rússia e ele para a França. Entre cartas, a guerra começou. Éluard foi para o front e ficou algumas vezes hospitalizado no meio do caos.
Meu ideal não está mais no céu,
E lanço meu estribilho
Às estrelas… em teus olhos! (Paul Eluard, 1913. In: Bona, p. 36)
Em 1917, Paul e Gala se casaram em Paris durante a ocupação alemã – ela aos 22 anos e ele aos 21 anos. Gala foi o motor do amor na guerra, ela saiu da Rússia durante a queda do Império e a Revolução Russa, atravessou territórios de trem em plena Primeira Guerra Mundial.
Gala tornou-se a musa de seus poemas, musa de sua vida, mãe de sua filha e uma Dadaísta, ou melhor, a mulher de um Dadaísta, assim era o mais comum. As mulheres ajudavam, mas não eram reconhecidas, salvo exceções da poetisa Celine Arnaud (esposa de Paul Dermée – ela se suicidou em 1952, um ano após a morte do marido) e das pintoras Hannah Höch, Sophie Taeubr (esposa de Arp) e Sonia Delaunay (esposa de Robert).
“Vivam as concubinas e os concubistas!” (Picabia) Dadá odeia hábitos e convenções, tolera o amor, mas detesta o casamento. (In: Bona, 1996, 117)
Francis Picabia abandonou esposa e filhos. André Breton se separou e sua amante casada decidiu agir conforme o Dadá, e num acesso de fúria:
Destruiu fotos, cartas, livros de Apollinaire com dedicatória, textos manuscritos de Jacques Vaché e alguns quadros – dois Derain, três Marie Laurencin, um Modigliani. Inspirada pelos métodos de Tzara e seu bando – destruir tudo, dizia Dadá -, verdadeira Átila. (…) Ela apenas deixou uma mensagem em forma de poema dadaísta: “Tudo remonta à mais recuada Antiguidade, as pichações que encantam os menininhos não passam nunca de corações e triângulos cercados de fogo.” (In: Bona, p. 117-118)
A Dadaísta não oficial, Georgina Dubreuil, desapareceu depois do ocorrido. “Breton ficou em choque”: os livros e dedicatórias de Apollinaire se foram. Apollinaire foi seu amigo, poeta italiano naturalizado francês que lutou pela França – foi soldado da artilharia e sobreviveu aos ferimentos na cabeça, mas faleceu em 1918 de gripe espanhola.
Breton deixou a medicina e rompeu com a família. Em 1921 casou com Simone Kahn, considerada uma intelectual não Dadaísta. Louis Aragon também deixou os estudos em medicina e rompeu com a família.
O casal Éluard, a despeito de todos os abandonados no amor ou na guerra, manteve-se firme. A força do amor se expandiu quando em 1921, Max Ernst, um desertor da artilharia alemã e Dadaísta deserdado pelo pai, expôs em Paris suas colagens e pinturas. Tão logo Paul Éluard e Max Ernst se conheceram, tornaram-se ‘irmãos’; descobriam que por pouco não se enfrentaram na guerra em 1917, no front em Somme, eles estavam frente a frente, ambos soldados em trincheiras inimigas. (In: Bona, p. 138)
Ernst era conhecido como DadaMax, entre os títulos honoríficos Dadaístas.[i] Éluard tornou-se o melhor amigo e meio de Ernst, passando a escrever sobre suas pinturas. Também escreveram juntos poemas e passaram a dividir os braços de Gala, sem rivalidades. Éluard deixou que Gala vivesse o amor sem cobranças. Ela amou Paul e Max de maneira Dadaísta, mas o clube masculino Dadá se ressentiu de Gala. A resposta de Dadamax ao clube, foi inserir Gala numa pintura como parte do grupo Dadaísta e inseriu Doistoiéviski, abominado pelos Dadaístas e amado por Gala. Dadamax aproveitou o ensejo do amor e inseriu o Renascentista Rafael Sanzio, também abominado pelo grupo.
Em Au rendez-vous des amis, Ernst numerou os personagens de 1 a 17… ele próprio leva o número 4 (sentado no colo de Dostoiéviski), Eluard, o número 9. Entre todos esses homens, uma única mulher, o número 16: Gala… Breton parece presidir a sessão… Aragon… Crevel toca um piano invisível… Perét como seu monóculo, Desnos meio apagado… (In: BONA, p. 155)
Em 1922, mesmo com o discurso de abandonar tudo, Éluard continuou a declarar seu amor à Gala e sua enorme admiração por seu amigo-irmão Ernst, ajudando-o financeiramente. Ernst pintou muito a Gala mas algumas dessas telas foram destruídas durante a Segunda Guerra Mundial, em 1937, com o argumento de “arte degenerada”.
Paul Éluard deixou de escrever sobre as dores da guerra e passou a escrever sobre as dores do amor.
O desespero não tem asas,
Nem o amor
Não me mexo,
Não os olho, Não lhes falo
Mas estou tão vivo quanto meu
amor e meu desespero.
(Paul Éluard, Nudez da verdade, da coletânea Morrer de não morrer. (In: Bona, 167)
Paul Éluard desapareceu em março de 1924. Dois meses depois escreveu a Gala do Taiti. Paul, Gala e Max se reencontraram em Saigon. De lá, retornaram Paul e Gala sem Max Ernst. Ao chegarem em Paris, o Surrealismo eclodiu sob a égide de André Breton.
Referências:
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Tradução Denise Bottmann & Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BAITELO JUNIOR, Norval. DADÁ-BERLIM DES/MONTAGEM. São Paulo: ANNABLUME, 1993.
BONA, Dominique. GALA. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 1996.
BORRÀS, Maria Lluïsa. PICABIA. New York: Rizzoli, 1985.
COUTO, Renan Cardozo. A Imagem conceitual – uma contribuição ao estudo da arte contemporânea. Tese de doutorado, 2012. UFMG. (consulta em setembro 2020) https://docplayer.com.br/9082502-Ronan-cardozo-couto-imagem-conceitual-uma-contribuicao-ao-estudo-da-arte-contemporanea.html
DIEHL, Gaston. Max Ernst. New York: Crown publishers, 1973.
GOMBRICH, Ernst H. J. História da Arte. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.
MADEIRA, Gisele (dissertação) Pulsações de formas, cores e temas: imagens do cotidiano da obra de um artista (1967 a 1988) PUC/SP, 1995.
MENEZES, Philadelpho. A crise do passado. São Paulo: Experimento, 1994.
SANOUILLET, Michel (apresentação) DADÁ – Réimpression intégrale et dossier critique de la revue publiée de 1916 à 1922 par TRISTAN TZARA. Nice: Centre du XX e siècle, 1976.
SCHAPIRO, Meyer: A Arte Moderna séculos XIX e XX. Tradução Luiz R. M Gonçalves. São Paulo: Edusp, 1996.
STANGOS, Nikos (Org.) Conceitos da Arte Moderna. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
[i] Havia uma relação de dadaístas como títulos honoríficos. Raoul Hausmann era Dadásofo; George Grosz era Politidadá; Richard Huelsenbeck era Dadamundi; Franz Jung era Dadanarquista, entre outros. In: Baitelo Junior, 1994, p. 106)
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