ELAS por ELAS: Maria Werneck, Margareth Mee & Adriana Florence

22 mar

por Gisele Miranda

O que ELAS têm em comum? São três mulheres artistas e ambientalistas que trazem referências históricas dos viajantes cientistas e artistas dos séculos 17 ao 19 para os séculos 20 e 21. Esse alinhavo de séculos tem uma bagagem exploratória de desenhos, pinturas, gravuras, fotografias sobre os biomas do Brasil, os trajetos desbravados e refeitos por pesquisadores ao longo dos séculos.

Maria Werneck (1909-1994) e Margareth Mee (1909-1988) representam a arte botânica do século 20 agregados aos trajetos expedicionários de Humboldt (1769-1859), Langsdorff (1774-1852) e Richard Spruce (1817-1893) às especificidades dos biomas da Amazônia, Pantanal, Mata Atlântica e do Cerrado. Adriana Florence resgatou sua história como tetraneta de Hercules Florence (1803-1979) à importância das pesquisas e registros artísticos – desenhos, pinturas, livros, fotografias e o documentário: “No Caminho da Expedição Langsdorff” (2000).

ELAS percorreram árduos trajetos contra hegemônicos pela História Natural e pela Arte, abriram discussões sobre a Natureza-morta, desenhos botânicos (estudos científicos), arte decorativa à Arte Contemporânea com ações ambientais. ELAS são também Dulce Nascimento, Gloria Gonçalves, Hiroe Sasaki, Malena Barreto, Maria Tereza Reif, Patrícia Vilela, Regina Julianele, Evandra Rocha… .

Série Gontran Netto e as parcerias com Historiadoras II: o encontro com Edna Prometheu

22 jan

por Gisele Miranda

A Edna é uma pernambucana séria e consequente! Absolutamente séria! A Edna tem autonomia política para me representar porque ela encontra todo mundo (…) ela também pinta. É autêntica… ela tem uma pintura ingênua. (Gontran Netto, áudiovisual 8 jan. 2003)

A historiadora Edna Prometheu sempre esteve na boa memória do artista Gontran Netto como uma mulher de luta que o representou e ao Grupo Denúncia ao expor o conjunto de pinturas Sala Escura da Tortura.*

Edna esteve no comando da Sala Escura da Tortura no Fórum Social em Porto Alegre em 2003 e 2005, posteriormente foi para o Museu do Ceará em Fortaleza, em seguida para o Memorial da Resistência de São Paulo (antigo DOPS) até acompanhar a Comissão Nacional da Verdade do Brasil (2011 a 2014). Sem contar as intervenções da potente Edna no meio político, sensibilizando, debatendo, educando através da História e da Arte.

A pintura abaixo é parte de Sala Escura da Tortura e mostra a violência às mulheres presas durante as ditaduras civis e militares da América Latina – seguido dos estupros: a mais antiga arma de guerra.

Figura 1: Sala Escura da Tortura – obra coletiva realizada em 1973, em Paris, pelo Grupo Denúncia, criado por quatro pintores antifascistas: o argentino Julio Le Parc (1928-), o  brasileiro Gontran Guanaes Netto (1933-2017), o uruguaio José Gamarra (1934) e o espanhol Alejandro Marcos (1937-).

Para que as exposições acontecessem, a historiadora precisou articular muito, cavar espaços e propor conteúdos. Ela também exerceu ações com o Movimento Sem Terra, o MST; em uma das vezes levou o amigo-artista Gontran Netto que doou uma pintura “anonimamente”. Durante as entrevistas com Gontran de 2002 a 2007 (e a convivência até 2016), ele ratificou a importância de Edna nas lutas atuais e emergenciais e que foram revertidas em temas para suas pinturas, tal como o mural  Populações, ressaltando a  importância do MST.

Figura 2: Gontran Guanaes Netto, Populações (detalhe), 2001-2003. Óleo sobre tela, 2m x 2m. Arquivo GGN/GM.

Edna enfrentou a misoginia, o machismo e ameaças aquém da ignorância atiçada pela política all right. Ela sempre foi uma combatente e não baixou a guarda nem para viver sua história de amor com o cantor e compositor Belchior (1946-2017). Os ataques vieram em julgamentos que a repudiaram como intelectual colocando-a em um patamar de ojeriza para ser a companheira de Belchior – como se o artista (filósofo) fosse uma marionete. Oras, “não preciso que me digam de que lado nasce o sol, porque bate lá meu coração” (Belchior, Comentários a respeito de John, 1979)

Figura 3: Edna Prometheu e Belchior. Imagem: Jarbas Oliveira/Folhapress s-d.

Edna foi alvejada de acusações, manipulações e doutrinações enquanto companheira de Belchior e após a morte dele.  A misoginia preponderou e armou uma cilada concomitante ao cenário político do golpe que tirou a presidenta Dilma Rousseff (2016). O coro de impropérios dilacerou duas grandes mulheres. Por mais que elas tenham resistido suas entranhas foram sendo carcomidas, mas regeneradas dia a dia pela Memória e pela História – embuidas de lutas em prol da civilização e cultura, tal como o mito de Prometheu. Não foi à toa que Edna Assunção de Araújo tornou-se Edna Prometheu, sobrenome artístico que cunhou ao longo de sua jornada à condena por emanar a liberdade e o amor visando as artes e as ciências.

Prometheu de Ésquilo, George Byron, Johann Schlegel, Beethoven ao “Prometheu mal acorrentado” de André Gide embalam na poética de Belchior:

(…) Anjo, herói, Prometheu, poeta e dançariano. A glória feminina existe e não se faz em vão! E se destina à vida, ao gozo, a mais do que a imaginação o louco que pensou a vida sem paixão… (Belchior, Primeira Grandeza, 1987.)

(*) Sobre a obra coletiva Sala Escura da Tortura: https://tecituras.wordpress.com/2023/11/01/sala-escura-da-tortura/ Em 2011, o conjunto de pinturas esteve sob curadorias de Lucia Alencar & Gontran Netto.

Série Gontran Netto e as parcerias com Historiadoras I: o encontro com Radha Abramo

28 dez

por Gisele Miranda

O Angelus Novos do Porvir, aquele que olha a diante e se apropria do real e o metamorfoseia. (NEGRI, 2001, p. 17)

Radha Abramo (1934-2013) foi uma crítica de arte brasileira, historiadora, militante da liberdade de expressão pela história e pela arte em ação política. Junto com o jornalista Claudio Abramo (1923-1987), seu marido, foram presos políticos em 1975, mesmo ano do assassinato do amigo também jornalista Wladmir Herzog (1937-1975),  durante a ditadura civil e militar do Brasil, no governo de Ernesto Geisel, de 1974 a 1979.

Radha e Claudio resistiram alguns anos, mas saíram do Brasil retornando em 1985 quando o gal. João Figueiredo de 1979 a 1985, realizou a transição política sem eleições diretas. A Comoção das ‘Diretas Já‘ foi suprimida naquele momento, mas tornou-se uma histórica manifestação agregada ao retorno dos exilados políticos, ou seja, os primeiros passos depois de 21 anos de ditadura. Assim, retornaram o casal Abramo, Gontran Netto, “o irmão do Henfil e tanta gente que partiu…”(*)

Em 1985, houve a disputa entre o filho pródigo da ditadura militar Paulo Maluf e o oposicionista Tancredo Neves que venceu mas não assumiu porque veio a óbito assumindo seu vice José Sarney, de 1985 a 1989. Abaixo, uma crítica sarcástica sobre esse momento reverberando Maquiavel através de Gontran Netto, o pintor amigo de Radha, acolhido pela marchand do exílio ao retorno.

Se considerarmos que Maquiavel nos seus conselhos ao príncipe sugere o seguinte: para preservar o seu poder faça uma guerra ao seu primo, seu rival potencial. Pra isto, nomeie um general competente que ganhará a guerra e se tornará um herói. Faça com que ele seja morto por um assessor. Enforque este assessor. Faça um enterro apoteótico ao general herói nacional. Em seguida nomeie um ministro civil comprometido com todas as fraquezas do sistema. Assim ele será permanentemente dependente de sua tutela. Ocorrendo isto terá um reinado estável e permanente. (Gontran Netto, áudio, 2007)

A historiadora encontrou no artista Gontran Netto recursos pictóricos com conteúdo necessário sobre questões que lhe eram caras demais, tais como a Democracia,  os Direitos Humanos, repúdio as ditaduras, as torturas e as prisões em uma linguagem de luta expressa à Educação. Desde então, Radha passou a acompanhar e a escrever sobre a arte de Netto como aulas de História, Arte e Política.

Ele tem uma vocação política que emerge de seus pincéis (…) transformados através da arte em uma ação futura. A “ação futura” é vislumbrada na obra e Gontran, do presente de luta para que o passado seja tratado dos males de sua história de violência, usurpação e de silêncio. As pinturas, os desenhos, as gravuras de Netto, conseguem debater o que de pior vem acontecendo. (ABRAMO, Radha. Manuscrito, Paris, ago. 1982)

Em maio de 2000, ela o destacou pela trajetória como professor de História da Arte:

Com cada turma que se formava (…) Para Gontran, parece-me, as condições objetivas e subjetivas configuradas em situações teóricas e/ou práticas, reviram-se, alimentavam-se uma das outras (…) no sonho do revolucionário e o bem querer do artista. (ABRAMO, Radha. Manuscritos, 2000)

Radha também esteve com ele quando foi encontrada uma pintura no Ministério da Agricultura, cogitada ser de Portinari ou de um dos seus assistentes e Gontran havia sido assistente de Portinari.

Houve a esperança de reconstruir a tela, mas o senhor Bardi e o Magalhaes disseram que não era do Portinari. Eu avaliei porque a Radha me disse que poderia ser meu ou do Luiz Ventura (…) esse quadro me fez rever o Portinari, as influências culturais contra o Portinari. (…) O Portinari se deu num processo de imigrantes, da região do café, da terra. Da terra nasceu um artista, refletindo esse estado do ser (…) ligado aos muralistas mexicanos e vedado pelo marcathismo (…). Bom, acharam que eu queria ganhar um dinheirinho fácil sobre um falso Portinari. Não houve restauro. Nem importa de quem era, mas merecia o restauro. (GGN, áudio, 9 mar. 2003)

A crítica de arte, em sua escrita sobre o artista, desde 1982, deixou um recado válido aos dias de hoje no Brasil:

“Se os museus brasileiros não tiveram ainda a honra de receber os quadros de Gontran, não importa. Cuba, o faz por eles.” (ABRAMO, Manuscrito, Paris, ago. 1982)

Gontran Netto e Radha Abramo. São Paulo, 2006.

Os textos de Radha são intensos para a sua geração e de vanguarda nos dias atuais. A mesma geração de Gontran em meio as arbitrariedades do Estado, das prisões, torturas e assassinatos. Invariavelmente de conflitos intensos sobre a condição de exilados. Falar sobre exílio é mesclar a infelicidade às tentativas de antídotos. Tema do qual Gontran e Radha vinham buscando entender, por isso foram ao encontro de Jacques Derrida (1930-2004) e Antonio Negri (1933-2023), ambos exilados.

Apesar de todo o processo de inclusão, de produtividades afetivas no exílio, Gontran, Radha, Negri, entre outros, projetaram e refletiram sobre as expectativas do desejo de retorno – o exílio está sempre em órbita porque é um “não lugar”. Ou como bem disse outra exilada, em um contexto histórico mais recente, contudo, interligado pela falta de Memória e História à fragil Democracia. 

O exilado perde a pátria, perde seu território, sua língua e sua pertença concreta. O exilado rompe o fio que o ligava à vida (…) O exílio confunde o estado político de exceção com o estado existencial de exceção quando a pessoa mesma já não existe (…) O exílio exige uma fuga perfeita, mas não há refúgio ou esperança para nós (…) O exílio é um estado de desterro para alguns no presente, um estado absoluto para todos no futuro. (Marcia TIBURI. Exílio. In: Instagram, 28 dez. 2021)

No entanto, a resistência política traz “a reflexão prática sobre o exílio” e “a relação entre valores e afetos”:

Falar de valores e afetos significa escavar no marxismo e na teoria do materialismo histórico até o ponto em que a produção de valor, ou melhor, a expressão do trabalho vivo, traz à tona, com a corporeidade do sujeito, sua inteira constituição mental e afetiva. (NEGRI, 2001, pp. 9-10)

(*) O bêbado e a equilibrista, de Aldir Blanc (1946-2020) e João Bosco (1945-) lançada na voz de Elis Regina (1945-1982), hino da anistia aos presos políticos, em 1979.

Sugestões:

BETINHO, a esperança equilibrista (filme). Direção Victor Lopes, 2015. Link trailer https://youtu.be/s7pksVLYAkU?si=AkSwfVLAiqr__Pty

HENFIL (documentário). Direção Angela Zoé, 2017. Link trailer https://www.youtube.com/watch?v=vMwpXx8_k4o

BETINHO, no fio da navalha (Série) Direção: Lipe Binder, 2023. Link trailer https://www.youtube.com/watch?v=ZFVL_zTlvUY

Santa Helena e Unilabor

18 nov

por Gisele Miranda

Geraldo de Barros (1923-1998) teve um elo importante com a fotografia, o  que o levou a vinculação com o Foto Cine Clube Bandeirantes desde sua criação, em 1952, momento em que esteve em contato com Thomaz Farkas (1924-2011) e German Lorca (1922- 2021).  

Geraldo de Barros, Fotoforma, c. 1949. Fotografia em papel de gelatina/prata (cópia a partir do negativo recortado, prensado entre duas placas de vidro) Foto Família Geraldo de Barros. https://www.geraldodebarros.com/main/

Na pintura, Geraldo esteve ligado a Clovis Graciano (1907-1988), Colette Pujol   (1913-1999), entre outros. Ele também criou a UNILABOR (Cooperativa de Móveis, 1954), em parceria com freis dominicanos para ser um local onde o artista tivesse uma  preocupação social.

Unilabor (detalhe) espaço de trabalho. Foto Família Geraldo de Barros. https://www.geraldodebarros.com/main/

Na Unilabor, Geraldo contou com a assistência do jovem pintor Gontran Netto (1933-2017), na época com 21 anos, autodidata, filho e neto de boias frias.

Uma fase importante da minha vida na UNILABOR (…) recebi a visita do frei dominicano João Baptista, recém chegado da França onde participou de experiências como padre operário. O frei me propôs participar de uma comunidade (ou cooperativa). Expôs o seguinte: -Temos informações sobre você (talvez passadas pelo professor Agostinho) e cremos que você seria a pessoa adequada para ajudar nesta tarefa. Sabemos de suas tendências comunistas e por isso teríamos alguém com tais atributos.’ (GGN, Relatos de uma Existência, 2010)

Na Cooperativa, Gontran teve o aval de Geraldo de Barros para ser assistente de Clóvis Graciano em um painel no Aeroporto de Congonhas, em 1954, para o IV Centenário da cidade de São Paulo. O painel Trabalhadores foi uma parceria de Clovis com Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976). Essa pintura é parte do acervo artístico do aeroporto de Congonhas e encontra-se no espaço “pavilhão das autoridades”. Esse painel esteve no abandono e foi restaurado, mas continua sob acesso restrito às visitações por agendamentos de acordo com cada mudança política.

Clóvis Graciano e Di Cavalcanti. Os Trabalhadores. 3,5 x 16 m, 1954. Pavilhão de autoridades, Aeroporto de Congonhas. SP. In: Portal de periódicos UDESC. Florianópolis.

Há um outro painel de Clovis Graciano mais acessível, Operários, de 1960, na Avenida Rubem Berta que quase foi destruído por uma ação política, em  2017. Felizmente, a política do apagamento foi embargada.

O painel é a forma mais democrática da pintura. O governo, se quisesse, poderia mandar pintar painéis em logradouros públicos, como estações, campos de esporte, etc. É uma forma de levar a arte ao povo, de imortalizar momentos históricos, de maneira a que todos tenham possibilidades de vê-los. A tela pertence a uma minoria. O painel a todos quantos queiram vê-lo. (Clóvis Graciano, 15 jan. 1969. In: São Paulo Antiga)

Graciano fez parte do grupo Santa Helena (1935), ou seja, um grupo de artistas envolvido em diversas atividades para o próprio sustento. Após o horário de expediente eles se encontravam para pintar, debater técnicas e criticar o grupo da Semana de Arte de 22 em sua ‘aristocracia’ e seu ‘intelectualismo’.

No Santa Helena, os artistas eram proletários, imigrantes ou filhos de imigrantes. Todos tinham um trabalho de subsistência, de pintores de paredes e frisos, mecânicos, bancários, professores, figurinistas, cenógrafos, para manterem seus encontros na pintura. Eram eles, Alfredo Volpi (1896-1988), Francisco Rebolo (1902-1980) e Mario Zanini (1907-1971), Aldo Bonadei (1906-1974), Manoel Martins (1911-1979), Alfredo Rizzotti (1909-1972), Humberto Rosa (1908-1948), Fulvio Pennacchi (1905-1972) e Clovis Graciano. As temáticas e as técnicas eram diversificadas, mas a luta diária, os uniu.

Gontran Netto depois de seus 70 anos reiterou inúmeras vezes a dificuldade de “ser um caipira intelectual”, como se um não permitisse o outro. No grupo Santa Helena também houve um conflito semelhante: “ser um proletário intelectual.” Vingou o melhor dos temperos, mas o conflito foi inevitável e necessário.

Bonadei foi, segundo o crítico de arte Jacob Klintowitz, “o mais intelectual do grupo (…) formação erudita e um dos primeiros da arte abstrata no Brasil.” (Grupo Santa Helena. In: Enciclopédia Itaú Cultural).

Bonadei, Composição com Garrafa, 1955. Óleo sobre tela,
72,50 cm x 59,50 cm. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2120/composicao-com-garrafa

Julio Le Parc, o Alquimista

14 nov

por Gisele Miranda

Julio Le Parc (1928-) é um artista Cinético. Ele incorporou sua “alquimia” aos estudos de László Moholy-Nagy (1895-1946) e a teoria de Alfréd Kemény (1895-1945) e fertilizou a Arte Cinética, trinta e oito anos depois com a criação do GRAV – Groupe de Recherche d´Art Visuel, em 1960, dos quais foram membros: Horacio Garcia-Rossi (1929-2012), François Morellet (1926-2016), Francisco Sobrino Ochoa (1932-2014) e Jean Pierre Yvaral (1934-2002).

As experiências foram observadas em temporalidades e técnicas justapostas. Da importância do ‘ar’ através dos móbiles de Alexander Calder (1898-1976) nos anos de 1950, em meio a fabricação de brinquedos para resgatar o lúdico pela fonte de energia natural e com as cores de Piet Mondrian (1872-1944) e Joan Miró (1893-1983). Nessas metamorfoses foram criadas as intervenções vibratórias, a energia (seja natural ou não), do pictórico ao escultural de Jesús Rafael Soto (1923-2006), Carlos Cruz-Diez (1923-2019), Liliane Lijn (1939-), Martha Boto (1925-2004), entre outros, até Le Parc interferir com sua premissa da Luz – seus efeitos e as intervenções transformadas em parcerias anônimas de pessoas que vão ao seu encontro. Ou seja, uma parceria ativa de “forças que se desenvolvem por iniciativa própria” (STANGOS, 1981, p.153) até a abdicação do ego em prol dessa parceria.

São vieses que obviamente compõem leituras e questões associativas para a criação do conceito do GRAV, que primou pela interferência, conjugada a experiência do artista que cede o espaço para a criação em fluxos intensos e singulares – a imagem que surge com o movimento ou o movimento cria uma forma no espaço com as variantes inesperadas sob efeito da luz.

Le Parc não se eximiu de suas responsabilidades sobre as guerras do Vietnã e da Argélia. Ele viveu em Paris no auge de maio de 1968, em um momento histórico da França com as participações de intelectuais como Michel Foucault, Simone de Beauvoir, Jean Paul Sartre, Félix Guattari, Gilles Deleuze, entre outros – nas ruas, nas manifestações com os estudantes, exilados, operários e camponeses.

As premiações têm assinaturas importantes contra as ditaduras militares que assolaram a América Latina dos anos de 1960 a 1980. Contudo, ele foi percebendo que o GRAV, depois que conseguiu a consagração, não primou pelas causas necessárias das quais nunca abandonou.

Esse foi o momento em que Le Parc viu em Gontran Netto (1933-2017) uma parceria que se desdobrou no Grupo de Pintores Antifascistas e no Grupo Denúncia. O alquimista cinético quando precisou ser um Realista para retratar os torturados em Sala Escura da Tortura, o fez desde as fotos às pinturas sem ferir sua opção pela Arte Cinética ou sua essência geométrica e concretista.

Julio Le Parc prefere designar seus trabalhos de “Experiências ou Alquimias” e não, Obras. Suas Alquimias germinam na Arte Contemporânea e na Arte Conceitual, vindas de um processo desde jovem quando uma professora sugeriu para a sua mãe que o matriculasse em uma Escola de Artes.

O jovem argentino de Mendoza mudou para Buenos Aires, onde estudou e trabalhou para se manter. Pouco depois, entrou na Universidade de Artes em um período de grandes reformas do primeiro governo peronista, de 1946 a 1955. Os estudantes interferiram no processo educacional e mesmo sem recursos, chamaram artistas para implementarem uma nova estética no espaço acadêmico, assim como participaram do processo de seleção dos professores e a compor trabalhos com eles.

Lúcio Fontana teve um grande peso na formação de Le Parc como professor e amigo. Lúcio abriu espaços, além da pintura, através do geometrismo, do objeto e das cores. Depois, Le Parc fez experiências com eletricidade, montou e desmontou objetos até adquirir um olhar desde a Arte Concreta à Arte Cinética, a partir do coletivo GRAV.

Quando Le Parc consegui uma bolsa de estudos para se aperfeiçoar em Paris, logo se adaptou as movimentações da França frente às mudanças que reverberaram no início dos anos de 1960. Nessa época ele já havia se tornado um proeminente artista franco-argentino e a obter respeito que lhe valeu inúmeras exposições importantes até ser premiado na 33α Bienal de Veneza, se sobrepondo, no auge da Pop Art, a Roy Lichtenstein, em 1966. (Julio Le Parc. In: 100 anos del Museo de la Cárcova, 21 set. 2021)

Vale lembrar que em 2016, Le Parc & Gontran Netto realizaram uma Conversa – do ateliê de Le Parc em Paris para alunos de Artes Visuais do Paraná (1), concomitante, a homenagem da Bienal de Curitiba 2015-2016 ao artista franco-argentino (2). Abaixo, duas intervenções nas alquimias de Le Parc.

(1) Em fevereiro de 2016, Julio Le Parc & Gontran Netto nos deram a honra de uma “Conversa” na UEM – Universidade Estadual de Maringá. A proposta previa a interação dos alunos de Artes Visuais, Arquitetura, Moda, Design, História e Artes Cênicas da UEM. Mas infelizmente não nos foi concedido um espaço para tanto, reduzido para dez pessoas, além dos difíceis recursos tecnológicos adaptados ao ateliê de Julio Le Parc, em Paris (programa NEAD da UEM). Um dia antes da “Conversa”, o estúdio cancelou o nosso encontro, que seria em dezembro de 2015. Remarcamos, por fim, aconteceu em janeiro de 2016. No final, o responsável pelo estúdio “esqueceu de ligar a câmera”.

(2) Bienal Internacional de Curitiba  3/10/2015 a 14/02/2016 no Museu Oscar Niemeyer – Julio Le Parc foi o artista homenageado Bienal Luz do Mundo, curadoria geral de Teixeira Coelho.

Gontran Netto & Julio Le Parc: amizade, parceria artística e política

14 nov

por Gisele Miranda

LE PARC, meu mais fiel e melhor amigo. Ele é o maior inimigo dos meus defeitos e dos meus fantasmas (…) Nós estávamos com a pretensão de poder um dia ver o mundo mudar em benefício dos deserdados. Algumas vezes nós conseguimos alguns resultados e deixamos a nossa marca sobre coisas concretas como o Museu da Palestina, Museu da Nicarágua, Museu Contra o apartheid, Museu Salvador Allende e etc. (GGN, áudio visual, 7 jan. 2005)

O pintor Gontran Guanaes Netto (1933-2017) e o amigo alquímico Julio Le Parc (1928) tiveram uma parceria por quase meio século, de 1970 a 2017. Seus trabalhos são distintos, mas suas cores se encontraram na luta antifascista e anticolonialista.

Fig. 1: Julio Le Parc e Gontran Guanaes Netto, Paris, década de 1970.

De 1970 a 1985, estiveram diariamente em Coletivos de Pintores Antifascitas e em inúmeras viagens para exposições coletivas em outros países: exposições com caráter estético-político. Destaque para as ações de protestos na Bienal de Veneza, em 1972-1973: Fundamos, a convite da Bienal de Veneza, a Brigada Internacional de Pintores Antifascistas. (GGN, manuscrito, 2010) O ano de 1973, foi de consternação pelos golpes militares no Uruguai e em seguida no Chile.

Quando Gontran retornou ao Brasil, em 1985, na abertura democrática brasileira, não houve estremecimento na amizade porque a maturidade foi construída – eles ficaram sete anos distantes  Mas, por que Gontran voltou ao Brasil no auge de sua carreira na França? Voltou “para impor – pela  força de um ato de testemunho” (NEGRI, 2001: 17) O retorno ao Brasil teve a coerência das ações políticas em parceria com Le Parc.

Le Parc saiu de Paris e por um dia que esteve em São  Paulo foi direto para o meu ateliê… Le Parc é um argentino irônico, cético e racional, mas quando se abalava dava lugar a um lado sensível. Eu era mais sensível e intuitivo, mas sempre utilizando argumentos e exemplos concretos… às vezes, a obra se empalidecia  para justificar os dogmas aleatórios, mesmo com toda a capacidade de trabalho. (GGN, áudio visual, 7 jan. 2005)

O reeencontro se deu em 1992, depois eles não se permitiram mais o distanciamento. Mantiveram-se em contato através de ligações e algumas viagens entre o Brasil e a França. Também, muitas reminiscências ratificando o laço forte dessa amizade.  Em 2002, o amigo argentino dedicou-lhe o poema Cores:

As cores da Esperança

Quando o ser humano vem a ser cores, Quando a cor vem a ser forma humana, Quando o ser humano este ligado à terra,

Quando o camponês da terra faz brotar seus frutos, Quando estes frutos são usurpados,

Quando esta usurpação gera a miséria, Quando esta miséria gera revolta, Quando esta revolta é reprimida,

Quando esta repressão obedece a uma ordem, Quando esta ordem é a ordem dos outros,

Quando estes outros acreditam ser proprietários do mundo, Quando este mundo se mundializa em detrimentos da maioria,

Quando esta maioria, eles os camponeses, vem a ser os ‘Damnés de la Terre’.

Quando Netto (Le Parc) com sua caixa de cores está presente,

Quando eles ‘ Les Damnés de la Terre’, estes camponeses (desaparecidos) brasileiros (argentinos), mesmo na pior situação, carregam neles, extremamente e internamente suas cores,

Quando suas cores são aquelas da dignidade, Quando suas cores são aquelas da luta, Quando suas cores são aquelas da esperança,

Quando suas cores são aquelas da alegria que não se deve apagar, Quando na caixa de cores de Netto (Le Parc) passa a ser ativa,

Quando suas cores passam a ser militantes, mas autônomos, elas fazem sua revolta, Quando esta revolta em cores vai ao encontro da justa revolta ‘ Damnés’,

Quando a mesma não passa pelo miserabilismo, nem pela obscura e sombria derrota, nem pela prostração e aniquilamento, mas sim

Pelo desejo e o direito à vida – As cores estão presentes,

Quando estas cores estão presentes no olhar de Netto (Le Parc), no seu coração, na sua primeira sensibilidade, na sua cabeça

Que põem em ordem, as cores passam a ser forma e fé no homem,

Quando tudo que está ancorado no mais profundo de seus ‘ Domnés de la Terre’ e no Netto- Le Parc, Pintor – homem, é evidente que venha a ser figuração,

Quando estão pela intermediação de Netto-Le Parc, com esta forte presença – cor, nós não podemos nos esquivar e nós somos também fortemente envolvidos,

Quando esperança não desaparece, quando a esperança cresce os quadros de Netto-Le Parc permanecem.

Ao ler o poema em voz alta, os olhos de Gontran que já eram grandes ficaram ainda maiores. Riu e lacrimejou ao rememorar o amigo que o chamava de “brésilien, mangeur de banane”. Em seguida lembrou de outra intervenção de Le Parc ao pedir-lhe que escrevesse um texto para uma publicação e respondendo ao seu próprio pedido com a seguinte ironia:

Se você estiver muito velho, sem condições de escrever eu sugiro o texto que eu fiz sobre você {O poema Cores}. A gente troca onde está escrito ‘para Netto’, você coloca ‘para Le Parc’.

Fig. 2: Gontran Guanaes Netto. Os donos da terra (homenagem a Julio Le Parc) Série de doze pinturas, 20022011. Óleo sobre tela, 100 x 100 cm.
Fig. 3: Julio Le Parc. Série 14-5E. Acrylico sobre lienzo 171 x 171 Cm, 1970.

Veja Gisele, pelo texto e a significação do texto é um dos maiores elogios que eu já tive, porque mostra que o texto serve parar mim e para ele.” (GGN, áudio visual, 7 jan. 2005)

Fig. 4: Julio Le Parc e Gontran Guanaes Netto. Ao fundo uma serigrafia de Le Parc baseada em uma pintura de Gontran Netto. França, 2014.

De 1985 a 2010,  Gontran viveu no Brasil. Às vesperas de seus 78 anos ele decidiu voltar a França, também para estar ao lado do amigo Le Parc. Pouco antes de sua partida escreveu “autobiografia de um artista bem sucedido”:

A proximidade dos meus 80 anos e na circunstância do meu retorno a França, sinto- me obrigado a remover a Casa da Memória (*) para outro local. Foi necessário dar uma nova ordem a apresentação dos quadros. Eles marcaram tomadas de posições sobre acontecimentos diversos, tais como: o neocolonialismo 1970-1973, Chile, Vietnã, imperialismo, Palestina, racismo, etc. (…) Ao mesmo tempo me vejo retornando a França com entusiasmo redobrado e com a pretensão de continuar oferecendo novas perspectivas e enriquecer os mesmos objetivos. (GGN, São Paulo, 15 de outubro de 2010)

Em 2017, aos 84 anos. Gontran Guanaes Netto faleceu em Cachan, França.

(*) Gontran abriu a sua Casa-Ateliê aos jovens estudantes de 2007 a 2010, transformando-a em Casa da Memória Coletiva, entre 2007-2008.

Artistas Solidários e os Museus de Resistências

4 nov

por Gisele Miranda

Ninguém será o mesmo depois de ter contemplado os quadros de Netto (…) se é poderoso abalará seu poder. Se é alienado sairá modificado. Se é alguém comprometido com a História, reafirmará sua posição e seu engajamento. Ele se comunica com todos (…) mas a obra não se comunica com os vencidos pois estes já perderam os olhos para ver as cruezas e as belezas da vida. As figuras humanas da obra de Gontran são reais – São seres humanos do Brasil, do Paraguai, da Bolívia, da Venezuela, do Chile, do Peru, da Colômbia, da África (…) Meus Deus, nós os vemos por toda a parte onde a riqueza está retida nas mãos de uma elite. (ABRAMO, Radha. Manuscrito, Paris, ago. 1982. Arquivo GGN/GM)

Em 1978, Gontran Netto (1933-2017), Julio Le Parc (1928-), Roberto Matta (1911-2002), Claude Lazar (1947-), entre outros artistas, realizaram a exposição International Art Exhibition for Palestine no Líbano durante a guerra civil (1975-1990), na Universidade Árabe de Beirute sob curadoria da artista Mona Saudi (1945-).

A pintura que Gontran doou foi destruída em 1982, em Beirute. Os bombardeios destruíram parte do local em que estavam algumas obras para a criação do Museu de Resistência da Palestina.

Em 2015, o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, MACBA, realizou uma exposição sobre a International Art Exhibition for Palestine de 1978. A exposição Desassossego do Passado, curadorias de Rasha Salti e Kritine Khouri, foi a partir de narrativas da “história perdida da exposição de 1978.” De Barcelona, a exposição seguiu para Berlim em 2016; “em 2017, Roma, Paris, Cidade do Cabo, Tóquio, Chile e Beirute”. (Institute for Palestine Studies, 27 nov. 2015)

Na década de 1980, Gontran se engajou contra o racismo através da exposição coletiva denominada 100 artistes contra le racismo. Ele pintou a Série contra o Apartheid para a criação de mais um Museu de Resistência organizado pelos artistas Ernest Pignon-Ernest, Antonio Saura e pelo filósofo Jacques Derrida que escreveu o ensaio Racism’s Last Word denunciando o Apartheid sob as leis do Ocidente sem sanções ou embargos.

Durante esse movimento, a África do Sul institucionalizou o preconceito racial através de prisões, torturas e assassinatos, tendo consolidado a segregação desde 1947. Em 1993, uma nova Constituição levou, em 1994, à presidência da República da África do Sul, Nelson Mandela ou como era carinhosamente chamado, Madiba, preso injustamente por 27 anos.

A arte do catálogo e do poster de Art contre/against Aparth ficou a cargo do artista gráfico Klaus Staeck. Todos os nomes dos participantes estão no entorno da representação do continente africano – os artistas solidários, exilados e apátridas.

A primeira exposição ocorreu em Paris (1983), depois viajou para várias partes do mundo, representados por Pignon-Ernest, Antonio Saura, Joe Tilson, Roy Lichtenstein, Gontran Guanaes Netto, Julio Le Parc, Sol LeWitt, Christian Boltanski, Donald Judd, Robert Motherwell, Claes Oldenberg, Tom Phillips, Larry Rivers, James Rosenquist, Pierre Soulages, Robert Rauschenberg, Valente Ngwenya Malangatana, Paul Rebeyrolle, Gavin Jantjes, entre outros. Todo esse movimento visava a conscientização e apoio para que o apartheid fosse tratado como prioridade humanitária sem a cegueira dos líderes do mundo.

Em 1986 e 1987, mais duas exposição contra o Apartheid: ART contre/against APARTHEID, organizada pela L’Association Art et Culture contre l’Apartheid.

Autorretrato

2 nov

por Gisele Miranda

“Eu sai da prisão… duas prisões, uma decorrente da outra. A primeira foi em setembro, a segunda em novembro de 1969. Assassinaram Marighella.” (GGN, áudio, 28 nov. 2002. Arquivo GGN/GM)

A primeira prisão do professor-artista Gontran Netto (1933-2017) se deu na sala de aula, na FAAP. A segunda no ateliê que dividia com José Roberto Aguilar (1941-) e Jô Soares (1938-2022). Na saída da segunda prisão recebeu o aviso que “na terceira não sairia com vida.”

Gontran Guanaes Netto (ou André), tríptico autorretratos de 1954-1964/ 1968-1969 e 1971-1972.óleo sobre madeira, 2 m x 1 m., 1972-1973. Acervo da Família/ Arquivo GGN/GM.

Gontran foi levado pela OBAN (Operação Bandeirantes) onde as torturas ficaram conhecidas ao extremo – “Bacuru” codinome do estudante Eduardo Collen Leite (1946- 1970) – torturas seguidas de mutilações. O momento limite foi na segunda prisão, no DOPS, fizeram-no sentar na “Cadeira do Dragão”.

Algumas horas depois de sua soltura, o artista deixou o Brasil, no intercâmbio presidencial de Costa e Silva a entrada de Emilio G. Médici, de 1969 a 1974.

José Ignacio Sampaio me propôs o seguinte: – Te pago a passagem, te levo até Viracopos e pronto. (…) Uma amiga, a Luiza Freire se encarregou do contrato de aluguel da minha casa, distribuindo minhas coisas entre os amigos (…) livros, discos, desenhos, pinturas. (…) passei a noite enterrando todo o material clandestino. (GGN, manuscrito, 2010. Arquivo GGN/GM)

Sem dinheiro sem falar francês e sem condições de trabalho (…) encontrei um amigo, o Luiz Hildebrando, cientista que trabalhava no Pasteur. Ele me perguntou: ‘e agora, o que você vai fazer!’ Disse a ele: o meu objetivo, dentro do possível, é ocupar um espaço onde eu possa atuar e desenvolver um trabalho contra as ditaduras. (GGN, áudio, 28 nov. 2002. Arquivo GGN/GM)

Ao sair do Brasil, Gontran viveu uma outra realidade, a França do presidente Georges Pompidou e a aliança com os EUA de Nixon. Visto por esse ângulo foram as estratégias políticas de apoio às ditaduras militares na América Latina, Neocolonialismo e o Apartheid – três dos pilares temáticos de sua pintura de 1969 a 1982.

Ao chegar em Paris lembrou que Antônio Henrique Amaral (1935-2015) havia lhe dito na noite anterior, no turbilhão de algumas horas antes do exílio, que o Arthur Piza (1928-) estava em Paris.

Havia abandonado as minhas filhas Lúcia (14 anos) e Cristina (11 anos). Desprovidas agora das condições econômicas (…) da presença física (…) estava vivendo a dor e a impotência (…) culpa por ter abandonado o país, ponderando que talvez pudesse ter sobrevivido na clandestinidade. (…) Não sabia bem o que dizer ao Piza … ele me disse: tem um hotelzinho aqui na esquina, leve esses 10 francos, tome um banho e descanse que o Francis virá buscá-lo. (GGN, manuscrito, 2010. Arquivo GGN/GM)

Sem saber se expressar para os amigos, cada dia sentia-se mais inseguro. Não parava de pensar, sentir medo e a recordar das prisões, dos gritos e das mortes. Depois de meses no exílio nesse “ir e vir dentro de situações de grande dramaticidade” (NEGRI, 2001, p.10), Gontran encontrou o escultor Construtivista Sergio Camargo (1930-1990):

Um fato decisivo para uma segunda fase de minha estadia na França: Sergio Camargo, artista carioca com prestígio em Paris me apresentou a Cité Internacional des’Arts (…) graças a esta apresentação fui aceito para uma estadia de um ano. (GGN, manuscrito, 2010. Arquivo GGN/GM)

Em Cité de’Arts ele se alinhou “aos Jovens Pintores, aos Pintores antifascistas, aos Pintores Latino-americanos em Paris”, enfim, um novo desafio com a segurança da infraestrutura e amizades. (GGN, áudio, 27 nov. 2002, fita II. Arquivo GGN/GM)

De imediato conheceu o já consagrado Julio Le Parc (1928-). Seus trabalhos são distintos, mas suas cores se encontraram na luta contra as ditaduras e o anticolonialismo. As exposições foram surgindo: duas exposições individuais em Paris. (1970 e 1974) e quatro coletivas, duas em Paris (1970 e 1972), uma em Nova York (1970) e outra em Havana (1973).

Passei a ser ouvido e respeitado, tanto nos meios intelectuais franceses como latino- americanos (…) participações em muitas exposições com caráter estético-político se multiplicaram. Fundamos, a convite da Bienal de Veneza, a Brigada Internacional de pintores Antifascistas. (GGN, manuscrito, 2010. Arquivo GGN/GM)

O último Poema

2 nov

por Gisele Miranda

Por causa do estupro cometido pelos torturadores, eu fiquei grávida e abortei na cadeia. Sofri choques elétricos, fui pendurada, posta no pau de arara, “submarinos” [ameaça de afogamento], simulação de fuzilamento, queimaduras com charutos (…) sofri estupro e assédio sexual com cães, a introdução de ratos vivos pela vagina e todo o corpo.

&

Obrigaram-me a ter relações sexuais com meu pai e irmão que estavam detidos. Também a ver e escutar as torturas de meu irmão e pai. Puseram-me na churrasqueira, fizeram cortes com facão na minha barriga. Eu tinha 25 anos.

(Relatos à Comissão da Verdade do Chile, 1990-1991/2004-2005: apuração dos crimes cometidos de 1973 a 1990. El País, Santiago, 11 set. 2019.)

Pouco antes do golpe militar no Chile, em 1973, o Museu de Arte Moderna foi pensado entre 1971-72, pelo então presidente Allende (1908-1973), a partir dos proponentes intelectuais e artísticos de vários países sob a liderança de Mario Pedrosa (1900-1981). No entanto, o Museu tomou um rumo diferente após o golpe militar, passando a ser um Museu de Resistência e Solidariedade. Gontran Netto (1933-2017) colaborou com a doação de “La Prière” (1), em 1973, concomitante, pintou “Chile 1973”

Gontran Guanaes Netto. “Chile 1973″. Óleo sobre tela 70 x 140 cm. Acervo da família/ Arquivo GGN/GM.

Com a morte de Allende, em 1973, o ditador Augusto Pinochet alinhou-se a um domínio sul-americano de muitas mortes. De 1973 a 1990, Pinochet manteve-se com um discurso neoliberal de privatizações e da educação controlada coadunada à visão do golpe; paralelamente, manteve estreitos laços com a Colonia Dignidad (fundada em 1961), comandada por um ex. suboficial nazista, Paul Schäfer. No local, praticavam-se estupros em crianças e mulheres. Os jovens presos políticos transferidos à Colonia tornavam-se cobaias para experimentos.

Os relatos de torturas são também calcados na experiência ditatorial do Brasil, desde 1964. Podemos incluir o Paraguai de 1954-1989, Bolívia de 1964-1982, o Peru de 1968-1980 e o Uruguai de 1973- 1985, três meses antes do Chile.

O artista Víctor Jara (1932-1973), professor de artes cênicas, poeta, músico tornou-se uma referência histórica e memorial sobre a violência durante a ditadura militar de Pinochet. Víctor foi um dos professores, junto com os alunos a ocupar a Universidade Técnica do Estado (UTE). Com um violão, ele cantou até ser detido e levado ao famoso campo de concentração do regime, o Estadio Chile, que em 2003, passou a se chamar Estadio Víctor Jara – marco de resistência contra o período da ditadura militar.

Testemunhas que estiveram com Víctor Jara no dia 16 de setembro de 1973, relataram à Comissão da Verdade que antes dele ser assassinado a tiros, os algozes  destruíram as suas mãos e lhe deram um violão para tocar.

Horas antes do ocorrido, Víctor conseguiu um papel e uma caneta com um amigo também detido no Estádio. Víctor Jara escreveu seu último poema.

Somos cinco mil

nesta pequena parte da cidade. Somos cinco mil.

Quantos seremos no total, nas cidades e em todo o país?

Somente aqui, dez mil mãos que semeiam e fazem andar as fábricas.

(…) Seis de nós se perderam

no espaço das estrelas.

Um morto, um espancado como jamais imaginei que se pudesse espancar um ser humano.

(…) Que espanto causa o rosto do fascismo! Colocam em prática seus planos com precisão arteira, sem que nada lhes importe.

O sangue, para eles, são medalhas. A matança é ato de heroísmo.

(…) O sangue do companheiro Presidente golpeia mais forte que bombas e metralhadoras. Assim golpeará nosso punho novamente.

Como me sai mal o canto

quando tenho que cantar o espanto! (…) O que vejo nunca vi,

o que tenho sentido e o que sinto fará brotar o momento (…)”

(Victor Jara, Estádio de Chile, 16 setembro de 1973). (2)

O último poema de Víctor Jara se transformou no Festival anual Víctor Jara, ou seja, cultura, educação, arte, história e memória do Chile Livre.

No mais, há de se debruçar sobre o tempo de apuração e os testemunhos. No Chile a Comissão da Verdade se deu no final da Ditadura Militar. No Brasil, a Comissão da Verdade se deu após vinte e sete anos após o término da ditadura.

Em 1991, um ano após a saída de Pinochet, a Comissão da Verdade do Chile apurou 3.065 mortes de jovens e 40 mil pessoas torturadas. Foram 17 anos de lavagens de dinheiro público e tráfico de cocaína no Exército. Pinochet manteve-se intocável até ser preso, aos 82 anos, em Londres enquanto tratava de problemas de saúde. Ele ficou em cárcere  domiciliar por crimes contra a humanidade. Em 2018, por decisão da justiça chilena, a família de Pinochet devolveu parte do dinheiro roubado dos cofres públicos do Chile.

(1) Sobre “La Prière” ou “A Oração” V. Série Retecituras V: Gontran Guanaes Netto e o seu manifesto pelo Chile https://tecituras.wordpress.com/2010/08/17/serie-retecituras-v-gontran-guanaes-netto-e-o-seu-manifesto-pelo-chile/

(2) “Somos cinco mil aquí. En esta pequeña parte de la ciudad. Somos cinco mil. ¿Cuántos somos en total
en las ciudades y en todo el país? Somos aquí diez mil manos
que siembran y hacen andar las fábricas. ¡Cuánta humanidad
con hambre, frío, pánico, dolor,
presión moral, terror y locura! Seis de los nuestros se perdieron
en el espacio de las estrellas. Un muerto, un golpeado como jamás creí
se podría golpear a un ser humano. Los otros cuatro quisieron quitarse todos los temores,
uno saltando al vacío,
otro golpeándose la cabeza contra el muro,
pero todos con la mirada fija de la muerte. ¡Qué espanto causa el rostro del fascismo! Llevan a cabo sus planes con precisión artera sin importarles nada.
La sangre para ellos son medallas.
La matanza es acto de heroísmo. ¿Es éste el mundo que creaste, Dios mío?
¿Para esto tus siete días de asombro y trabajo? En estas cuatro murallas sólo existe un número que no progresa.
Que lentamente querrá la muerte. Pero de pronto me golpea la consciencia
y veo esta marea sin latido
y veo el pulso de las máquinas
y los militares mostrando su rostro de matrona lleno de dulzura.¿Y Méjico, Cuba, y el mundo?
¡Qué griten esta ignominia! Somos diez mil manos que no producen.
¿Cuántos somos en toda la patria? La sangre del Compañero Presidente
golpea más fuerte que bombas y metrallas. Así golpeará nuestro puño nuevamente.
Canto, que mal me sales
cuando tengo que cantar espanto. Espanto como el que vivo, como el que muero, espanto. De verme entre tantos y tantos momentos del infinito
en que el silencio y el grito son las metas de este canto. Lo que nunca vi, lo que he sentido y lo que siento
hará brotar el momento.”

Sala Escura da Tortura

1 nov

por Gisele Miranda

Sala Escura da Tortura é uma obra coletiva de 1973 realizada em Paris pelo Grupo Denúncia – criado por quatro pintores antifascistas: o argentino Julio Le Parc (1928-), o  brasileiro Gontran Guanaes Netto (1933-2017), o uruguaio José Gamarra (1934-) e o espanhol Alejandro Marcos (1937-).

O processo de criação dos painéis foi calcado nas denúncias de frei Tito de Alencar (1945-1974), um jovem frei dominicano que foi brutalmente torturado durante a ditadura civil e militar no Brasil.

Frei Tito e o artista Gontran Netto foram presos no governo militar de Arthur Costa e Silva (1967 a 1969). Gontran, após ser solto de sua segunda prisão, partiu para o exílio. Frei Tito, infelizmente, não teve tempo de se defender e continuou na  prisão sofrendo atrocidades que permaneceram até o fim de seus dias.

Em 1970, o frei escreveu sobre as torturas sofridas. Em janeiro de 1971, ele foi resgatado com mais 69 presos em troca do embaixador suíço, no governo do gal. Médici. Bastante efermo, Tito partiu para o Chile, Itália e França. Em 1974, a notícia de sua morte aos 29 anos.

Frei Tito não conseguiu mais viver depois de ter passado pela “sucursal do inferno”: que só terminou com sua morte. Em 10 de agosto de 1974 (…) à sombra de um álamo. (…) Acima do chão e abaixo do céu como aqueles que repousam na terceira margem do rio. (Sala Escura da Tortura, 2011, p. 53; 29)

Gontran, baseado também em suas prisões, pintou o conhecido “pau-de-arara” que em depoimento de Frei Tito ecoou:

Levaram-me para o “pau-de-arara”. Dependurado nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos (…) foram seis torturadores (…) O capitão Albernaz mandou que eu abrisse a boca para receber “a hóstia sagrada”. Introduziu um fio elétrico (FREI TITO. Sala Escura da Tortura, 2011, p. 54. Arquivo GGN/GM)

Grupo Denúncia. Sala Escura da Tortura, 1973. Painel “pau-de-arara” de Gontran Guanaes Netto. Arquivo GGN/GM.

Julio Le Parc, três anos depois de Sala Escura da Tortura viu a sua Argentina ser assolada, de 1976 a 1983, pelo golpe militar deixando um saldo de 30.000 desaparecidos.

Grupo Denúncia. Sala Escura da Tortura, 1973. Painel de Julio Le Parc. Óleo sobre tela 2 m x 2 m. Arquivo GGN/GM

Alejandro Marcos nasceu na Espanha, migrou para a Argentina com a sua família quando tinha 12 anos – exilados do fascismo de Franco. Em 1963, o artista foi para Paris onde reside até hoje. Ele pintou o exílio dos espanhóis à memória da dor de frei Tito de Alencar, sob a célebre frase de Picasso: “o pincel é minha arma contra o fascismo”.

Grupo Denúncia. Sala Escura da Tortura, 1973. Painel Alejandro Marcos. Óleo sobre tela 2 m x 2m. Arquivo GGN/GM.

O artista uruguaio José Gamarra pintou o painel que mostra a violência às mulheres presas e torturadas – seguido de estupros: a mais antiga arma de guerra. Gamarra viu de Paris, o seu Uruguai ser violentado pela ditadura três meses antes do golpe militar no Chile, em 1973.

Grupo Denúncia. Sala Escura da Tortura, 1973. Painel de Jose Gamarra. Óleo sobre tela 2 m x 2m. Arquivo GGN/GM.