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Série Gontran Netto e as parcerias com Historiadoras II: o encontro com Edna Prometheu

22 jan

por Gisele Miranda

A Edna é uma pernambucana séria e consequente! Absolutamente séria! A Edna tem autonomia política para me representar porque ela encontra todo mundo (…) ela também pinta. É autêntica… ela tem uma pintura ingênua. (Gontran Netto, áudiovisual 8 jan. 2003)

A historiadora Edna Prometheu sempre esteve na boa memória do artista Gontran Netto como uma mulher de luta que o representou e ao Grupo Denúncia ao expor o conjunto de pinturas Sala Escura da Tortura.*

Edna esteve no comando da Sala Escura da Tortura no Fórum Social em Porto Alegre em 2003 e 2005, posteriormente foi para o Museu do Ceará em Fortaleza, em seguida para o Memorial da Resistência de São Paulo (antigo DOPS) até acompanhar a Comissão Nacional da Verdade do Brasil (2011 a 2014). Sem contar as intervenções da potente Edna no meio político, sensibilizando, debatendo, educando através da História e da Arte.

A pintura abaixo é parte de Sala Escura da Tortura e mostra a violência às mulheres presas durante as ditaduras civis e militares da América Latina – seguido dos estupros: a mais antiga arma de guerra.

Figura 1: Sala Escura da Tortura – obra coletiva realizada em 1973, em Paris, pelo Grupo Denúncia, criado por quatro pintores antifascistas: o argentino Julio Le Parc (1928-), o  brasileiro Gontran Guanaes Netto (1933-2017), o uruguaio José Gamarra (1934) e o espanhol Alejandro Marcos (1937-).

Para que as exposições acontecessem, a historiadora precisou articular muito, cavar espaços e propor conteúdos. Ela também exerceu ações com o Movimento Sem Terra, o MST; em uma das vezes levou o amigo-artista Gontran Netto que doou uma pintura “anonimamente”. Durante as entrevistas com Gontran de 2002 a 2007 (e a convivência até 2016), ele ratificou a importância de Edna nas lutas atuais e emergenciais e que foram revertidas em temas para suas pinturas, tal como o mural  Populações, ressaltando a  importância do MST.

Figura 2: Gontran Guanaes Netto, Populações (detalhe), 2001-2003. Óleo sobre tela, 2m x 2m. Arquivo GGN/GM.

Edna enfrentou a misoginia, o machismo e ameaças aquém da ignorância atiçada pela política all right. Ela sempre foi uma combatente e não baixou a guarda nem para viver sua história de amor com o cantor e compositor Belchior (1946-2017). Os ataques vieram em julgamentos que a repudiaram como intelectual colocando-a em um patamar de ojeriza para ser a companheira de Belchior – como se o artista (filósofo) fosse uma marionete. Oras, “não preciso que me digam de que lado nasce o sol, porque bate lá meu coração” (Belchior, Comentários a respeito de John, 1979)

Figura 3: Edna Prometheu e Belchior. Imagem: Jarbas Oliveira/Folhapress s-d.

Edna foi alvejada de acusações, manipulações e doutrinações enquanto companheira de Belchior e após a morte dele.  A misoginia preponderou e armou uma cilada concomitante ao cenário político do golpe que tirou a presidenta Dilma Rousseff (2016). O coro de impropérios dilacerou duas grandes mulheres. Por mais que elas tenham resistido suas entranhas foram sendo carcomidas, mas regeneradas dia a dia pela Memória e pela História – embuidas de lutas em prol da civilização e cultura, tal como o mito de Prometheu. Não foi à toa que Edna Assunção de Araújo tornou-se Edna Prometheu, sobrenome artístico que cunhou ao longo de sua jornada à condena por emanar a liberdade e o amor visando as artes e as ciências.

Prometheu de Ésquilo, George Byron, Johann Schlegel, Beethoven ao “Prometheu mal acorrentado” de André Gide embalam na poética de Belchior:

(…) Anjo, herói, Prometheu, poeta e dançariano. A glória feminina existe e não se faz em vão! E se destina à vida, ao gozo, a mais do que a imaginação o louco que pensou a vida sem paixão… (Belchior, Primeira Grandeza, 1987.)

(*) Sobre a obra coletiva Sala Escura da Tortura: https://tecituras.wordpress.com/2023/11/01/sala-escura-da-tortura/ Em 2011, o conjunto de pinturas esteve sob curadorias de Lucia Alencar & Gontran Netto.

Série Gontran Netto e as parcerias com Historiadoras I: o encontro com Radha Abramo

28 dez

por Gisele Miranda

O Angelus Novos do Porvir, aquele que olha a diante e se apropria do real e o metamorfoseia. (NEGRI, 2001, p. 17)

Radha Abramo (1934-2013) foi uma crítica de arte brasileira, historiadora, militante pela liberdade de expressão, pela história e pela arte em ação política. Junto com o jornalista Claudio Abramo (1923-1987), seu marido, foram presos políticos em 1975, mesmo ano do assassinato do amigo também jornalista Wladmir Herzog (1937-1975),  durante a ditadura civil e militar do Brasil, no governo de Ernesto Geisel, de 1974 a 1979.

Radha e Claudio resistiram alguns anos mas saíram do Brasil retornando em 1985, quando o gal. João Figueiredo, de 1979 a 1985, realizou a transição política sem eleições diretas. A Comoção das ‘Diretas Já‘ foi suprimida naquele momento, mas tornou-se uma histórica manifestação agregada ao retorno dos exilados políticos, ou seja, os primeiros passos depois de 21 anos de ditadura. Assim, retornaram o casal Abramo, Gontran Netto, “o irmão do Henfil e tanta gente que partiu…”(*)

Em 1985, houve a disputa entre o filho pródigo da ditadura militar Paulo Maluf e o oposicionista Tancredo Neves que venceu mas não assumiu porque veio a óbito assumindo seu vice José Sarney, de 1985 a 1989. Abaixo, uma crítica sarcástica sobre esse momento reverberando Maquiavel através de Gontran Netto, o pintor amigo de Radha, acolhido pela marchand do exílio ao retorno.

Se considerarmos que Maquiavel nos seus conselhos ao príncipe sugere o seguinte: para preservar o seu poder faça uma guerra ao seu primo, seu rival potencial. Pra isto, nomeie um general competente que ganhará a guerra e se tornará um herói. Faça com que ele seja morto por um assessor. Enforque este assessor. Faça um enterro apoteótico ao general heroi nacional. Em seguida nomeie um ministro civil comprometido com todas as fraquezas do sistema. Assim ele será permanentemente dependente de sua tutela. Ocorrendo isto terá um reinado estável e permanente. (Gontran Netto, áudio, 2007)

A historiadora encontrou no artista Gontran Netto recursos pictóricos com conteúdo necessário sobre questões que lhe eram caras demais, tais como a Democracia,  os Direitos Humanos, repúdio as ditaduras, as torturas e as prisões em uma linguagem de luta expressa à Educação. Desde então, Radha passou a acompanhar e a escrever sobre a arte de Netto como aulas de História, Arte e Política.

Ele tem uma vocação política que emerge de seus pincéis (…) transformados através da arte em uma ação futura. A “ação futura” é vislumbrada na obra e Gontran, do presente de luta para que o passado seja tratado dos males de sua história de violência, usurpação e de silêncio. As pinturas, os desenhos, as gravuras de Netto, conseguem debater o que de pior vem acontecendo. (ABRAMO, Radha. Manuscrito, Paris, ago. 1982)

Em maio de 2000, ela o destacou pela trajetória como professor de História da Arte:

Com cada turma que se formava (…) Para Gontran, parece-me, as condições objetivas e subjetivas configuradas em situações teóricas e/ou práticas, reviram-se, alimentavam-se uma das outras (…) no sonho do revolucionário e o bem querer do artista. (ABRAMO, Radha. Manuscritos, 2000)

Radha também esteve com ele quando foi encontrada uma pintura no Ministério da Agricultura, cogitada ser de Portinari ou de um dos seus assistentes e Gontran havia sido assistente de Portinari.

Houve a esperança de reconstruir a tela, mas o senhor Bardi e o Magalhaes disseram que não era do Portinari. Eu avaliei porque a Radha me disse que poderia ser meu ou do Luiz Ventura (…) esse quadro me fez rever o Portinari, as influências culturais contra o Portinari. (…) O Portinari se deu num processo de imigrantes, da região do café, da terra. Da terra nasceu um artista, refletindo esse estado do ser (…) ligado aos muralistas mexicanos e vedado pelo marcathismo (…). Bom, acharam que eu queria ganhar um dinheirinho fácil sobre um falso Portinari. Não houve restauro. Nem importa de quem era, mas merecia o restauro. (GGN, áudio, 9 mar. 2003)

A crítica de arte, em sua escrita sobre o artista, desde 1982, deixou um recado válido aos dias de hoje no Brasil:

“Se os museus brasileiros não tiveram ainda a honra de receber os quadros de Gontran, não importa. Cuba, o faz por eles.” (ABRAMO, Manuscrito, Paris, ago. 1982)

Gontran Netto e Radha Abramo. São Paulo, 2006.

Os textos de Radha são intensos para a sua geração e de vanguarda nos dias atuais. A mesma geração de Gontran em meio as arbitrariedades do Estado, das prisões, torturas e assassinatos. Invariavelmente de conflitos intensos sobre a condição de exilados. Falar sobre exílio é mesclar a infelicidade às tentativas de antídotos. Tema do qual Gontran e Radha vinham buscando entender, por isso foram ao encontro de Jacques Derrida (1930-2004) e Antonio Negri (1933-2023), ambos exilados.

Apesar de todo o processo de inclusão, de produtividades afetivas no exílio, Gontran, Radha, Negri, entre outros, projetaram e refletiram sobre as expectativas do desejo de retorno – o exílio está sempre em órbita porque é um “não lugar”. Ou como bem disse outra exilada, em um contexto histórico mais recente, contudo, interligado pela falta de Memória e História à fragil Democracia. 

O exilado perde a pátria, perde seu território, sua língua e sua pertença concreta. O exilado rompe o fio que o ligava à vida (…) O exílio confunde o estado político de exceção com o estado existencial de exceção quando a pessoa mesma já não existe (…) O exílio exige uma fuga perfeita, mas não há refúgio ou esperança para nós (…) O exílio é um estado de desterro para alguns no presente, um estado absoluto para todos no futuro. (Marcia TIBURI. Exílio. In: Instagram, 28 dez. 2021)

No entanto, a resistência política traz “a reflexão prática sobre o exílio” e “a relação entre valores e afetos”:

Falar de valores e afetos significa escavar no marxismo e na teoria do materialismo histórico até o ponto em que a produção de valor, ou melhor, a expressão do trabalho vivo, traz à tona, com a corporeidade do sujeito, sua inteira constituição mental e afetiva. (NEGRI, 2001, pp. 9-10)

(*) O bêbado e a equilibrista, de Aldir Blanc (1946-2020) e João Bosco (1945-) lançada na voz de Elis Regina (1945-1982), hino da anistia aos presos políticos, em 1979.

Sugestões:

BETINHO, a esperança equilibrista (filme). Direção Victor Lopes, 2015. Link trailer https://youtu.be/s7pksVLYAkU?si=AkSwfVLAiqr__Pty

HENFIL (documentário). Direção Angela Zoé, 2017. Link trailer https://www.youtube.com/watch?v=vMwpXx8_k4o

BETINHO, no fio da navalha (Série) Direção: Lipe Binder, 2023. Link trailer https://www.youtube.com/watch?v=ZFVL_zTlvUY