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Série Gontran Netto e as parcerias com Historiadoras II: o encontro com Edna Prometheu

22 jan

por Gisele Miranda

A Edna é uma pernambucana séria e consequente! Absolutamente séria! A Edna tem autonomia política para me representar porque ela encontra todo mundo (…) ela também pinta. É autêntica… ela tem uma pintura ingênua. (Gontran Netto, áudiovisual 8 jan. 2003)

A historiadora Edna Prometheu sempre esteve na boa memória do artista Gontran Netto como uma mulher de luta que o representou e ao Grupo Denúncia ao expor o conjunto de pinturas Sala Escura da Tortura.*

Edna esteve no comando da Sala Escura da Tortura no Fórum Social em Porto Alegre em 2003 e 2005, posteriormente foi para o Museu do Ceará em Fortaleza, em seguida para o Memorial da Resistência de São Paulo (antigo DOPS) até acompanhar a Comissão Nacional da Verdade do Brasil (2011 a 2014). Sem contar as intervenções da potente Edna no meio político, sensibilizando, debatendo, educando através da História e da Arte.

A pintura abaixo é parte de Sala Escura da Tortura e mostra a violência às mulheres presas durante as ditaduras civis e militares da América Latina – seguido dos estupros: a mais antiga arma de guerra.

Figura 1: Sala Escura da Tortura – obra coletiva realizada em 1973, em Paris, pelo Grupo Denúncia, criado por quatro pintores antifascistas: o argentino Julio Le Parc (1928-), o  brasileiro Gontran Guanaes Netto (1933-2017), o uruguaio José Gamarra (1934) e o espanhol Alejandro Marcos (1937-).

Para que as exposições acontecessem, a historiadora precisou articular muito, cavar espaços e propor conteúdos. Ela também exerceu ações com o Movimento Sem Terra, o MST; em uma das vezes levou o amigo-artista Gontran Netto que doou uma pintura “anonimamente”. Durante as entrevistas com Gontran de 2002 a 2007 (e a convivência até 2016), ele ratificou a importância de Edna nas lutas atuais e emergenciais e que foram revertidas em temas para suas pinturas, tal como o mural  Populações, ressaltando a  importância do MST.

Figura 2: Gontran Guanaes Netto, Populações (detalhe), 2001-2003. Óleo sobre tela, 2m x 2m. Arquivo GGN/GM.

Edna enfrentou a misoginia, o machismo e ameaças aquém da ignorância atiçada pela política all right. Ela sempre foi uma combatente e não baixou a guarda nem para viver sua história de amor com o cantor e compositor Belchior (1946-2017). Os ataques vieram em julgamentos que a repudiaram como intelectual colocando-a em um patamar de ojeriza para ser a companheira de Belchior – como se o artista (filósofo) fosse uma marionete. Oras, “não preciso que me digam de que lado nasce o sol, porque bate lá meu coração” (Belchior, Comentários a respeito de John, 1979)

Figura 3: Edna Prometheu e Belchior. Imagem: Jarbas Oliveira/Folhapress s-d.

Edna foi alvejada de acusações, manipulações e doutrinações enquanto companheira de Belchior e após a morte dele.  A misoginia preponderou e armou uma cilada concomitante ao cenário político do golpe que tirou a presidenta Dilma Rousseff (2016). O coro de impropérios dilacerou duas grandes mulheres. Por mais que elas tenham resistido suas entranhas foram sendo carcomidas, mas regeneradas dia a dia pela Memória e pela História – embuidas de lutas em prol da civilização e cultura, tal como o mito de Prometheu. Não foi à toa que Edna Assunção de Araújo tornou-se Edna Prometheu, sobrenome artístico que cunhou ao longo de sua jornada à condena por emanar a liberdade e o amor visando as artes e as ciências.

Prometheu de Ésquilo, George Byron, Johann Schlegel, Beethoven ao “Prometheu mal acorrentado” de André Gide embalam na poética de Belchior:

(…) Anjo, herói, Prometheu, poeta e dançariano. A glória feminina existe e não se faz em vão! E se destina à vida, ao gozo, a mais do que a imaginação o louco que pensou a vida sem paixão… (Belchior, Primeira Grandeza, 1987.)

(*) Sobre a obra coletiva Sala Escura da Tortura: https://tecituras.wordpress.com/2023/11/01/sala-escura-da-tortura/ Em 2011, o conjunto de pinturas esteve sob curadorias de Lucia Alencar & Gontran Netto.

Artistas Solidários e os Museus de Resistências

4 nov

por Gisele Miranda

Ninguém será o mesmo depois de ter contemplado os quadros de Netto (…) se é poderoso abalará seu poder. Se é alienado sairá modificado. Se é alguém comprometido com a História, reafirmará sua posição e seu engajamento. Ele se comunica com todos (…) mas a obra não se comunica com os vencidos pois estes já perderam os olhos para ver as cruezas e as belezas da vida. As figuras humanas da obra de Gontran são reais – São seres humanos do Brasil, do Paraguai, da Bolívia, da Venezuela, do Chile, do Peru, da Colômbia, da África (…) Meus Deus, nós os vemos por toda a parte onde a riqueza está retida nas mãos de uma elite. (ABRAMO, Radha. Manuscrito, Paris, ago. 1982. Arquivo GGN/GM)

Em 1978, Gontran Netto (1933-2017), Julio Le Parc (1928-), Roberto Matta (1911-2002), Claude Lazar (1947-), entre outros artistas, realizaram a exposição International Art Exhibition for Palestine no Líbano durante a guerra civil (1975-1990), na Universidade Árabe de Beirute sob curadoria da artista Mona Saudi (1945-).

A pintura que Gontran doou foi destruída em 1982, em Beirute. Os bombardeios destruíram parte do local em que estavam algumas obras para a criação do Museu de Resistência da Palestina.

Em 2015, o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, MACBA, realizou uma exposição sobre a International Art Exhibition for Palestine de 1978. A exposição Desassossego do Passado, curadorias de Rasha Salti e Kritine Khouri, foi a partir de narrativas da “história perdida da exposição de 1978.” De Barcelona, a exposição seguiu para Berlim em 2016; “em 2017, Roma, Paris, Cidade do Cabo, Tóquio, Chile e Beirute”. (Institute for Palestine Studies, 27 nov. 2015)

Na década de 1980, Gontran se engajou contra o racismo através da exposição coletiva denominada 100 artistes contra le racismo. Ele pintou a Série contra o Apartheid para a criação de mais um Museu de Resistência organizado pelos artistas Ernest Pignon-Ernest, Antonio Saura e pelo filósofo Jacques Derrida que escreveu o ensaio Racism’s Last Word denunciando o Apartheid sob as leis do Ocidente sem sanções ou embargos.

Durante esse movimento, a África do Sul institucionalizou o preconceito racial através de prisões, torturas e assassinatos, tendo consolidado a segregação desde 1947. Em 1993, uma nova Constituição levou, em 1994, à presidência da República da África do Sul, Nelson Mandela ou como era carinhosamente chamado, Madiba, preso injustamente por 27 anos.

A arte do catálogo e do poster de Art contre/against Aparth ficou a cargo do artista gráfico Klaus Staeck. Todos os nomes dos participantes estão no entorno da representação do continente africano – os artistas solidários, exilados e apátridas.

A primeira exposição ocorreu em Paris (1983), depois viajou para várias partes do mundo, representados por Pignon-Ernest, Antonio Saura, Joe Tilson, Roy Lichtenstein, Gontran Guanaes Netto, Julio Le Parc, Sol LeWitt, Christian Boltanski, Donald Judd, Robert Motherwell, Claes Oldenberg, Tom Phillips, Larry Rivers, James Rosenquist, Pierre Soulages, Robert Rauschenberg, Valente Ngwenya Malangatana, Paul Rebeyrolle, Gavin Jantjes, entre outros. Todo esse movimento visava a conscientização e apoio para que o apartheid fosse tratado como prioridade humanitária sem a cegueira dos líderes do mundo.

Em 1986 e 1987, mais duas exposição contra o Apartheid: ART contre/against APARTHEID, organizada pela L’Association Art et Culture contre l’Apartheid.

O TECER dos 13 anos do Blog TECITURAS (2010-2023)

30 out

por Gisele Miranda, Lia Mirror & Laila Lizmann

O Blog Tecituras nasceu nas paredes de um quarto – gestado e parido. As palavras foram esculpidas, ora na pena, ora com as unhas. O caos, a dor e a “solidão do porvir de poucos” atentou que a “consciência sobrevive a qualquer circunstância”. As incisivas palavras são do artista Gontran Guanaes Netto (1933-2017), amigo, professor e tutor.

Gontran Netto nos deu a honra de sua colaboração no Tecituras com suas obras e suas reflexões, seus escritos e interferências.

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A homenagem dos 13 anos do Tecituras vem de um conteúdo Histórico, Artístico, Crítico e Político. De conteúdo imaterial, inquietações do pensamento à escrita com o objetivo de compartilhar conhecimentos, experienciar e zelar pelos bens culturais, com colaboradores – com ou sem vínculos acadêmicos e com uma bagagem de textos não perecíveis ao tempo, atualizados, conscienciosos de sua necessidade, por isso, nossa justa homenagem a Gontran Guanaes Netto. Há inúmeros textos sobre sua arte, sua luta, além de tutelar um pequeno espaço tecido ao longo desses anos com pesquisas sobre as obras de Antonio Peticov, Emmanuel Nery, Paschoal Carlos Magno, entre outros temas.

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O conteúdo artístico faz uma grande diferença. O conteúdo crítico é uma filtro necessário frente a educação da exclusão. Dessa homenagem tecemos reverência ao ofício dos professores em situações de risco e pobreza.

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Nosso Brasil tão diverso, nascido de um histórico de pura violência, dos séculos de escravidão, da exclusão, dos preconceitos. Esses séculos não foram sanados, tão pouco, os 21 anos de violência da ditadura civil e militar no Brasil, porque não há consciência histórica.
As ditaduras devastaram toda a América Latina, torturaram, violentaram, reprimiram, subornaram, difamaram e mataram. Toda essa herança resiste cada vez mais, estratificada nos professores, na moral da violência e da submissão material, na baixa remuneração, na ausência dos livros, das leituras, do tempo, das escritas à “missão impossível”.
Entre a teoria, o discurso frio e confortável há o extremo da prática nada confortável. Entre as fases antagônicas existem mais falas sujas, oportunas e arrogantes. Sem dúvida, a figura opressora tem cúmplices entre os próprios oprimidos. (1)

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Entre os traumatizados há sobreviventes, independente da indexação, do conforto, da assepsia, da insensibilidade, do apodrecimento, dos muros onde os discursos, principalmente econômicos falam mais alto, não por acidente, mas por natureza.

(1)  BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo Vol 2: A Experiência Vivida, Difusão Européia do Livro, 1967. “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.

(2)  DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 221. 

Série Ficcional H. Miller XXIX: A cama divã

30 out

por Lia Mirror, Laila Lizmann & Lara Kleine Augen

 

 

(…) As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
(Álvaro de Campos)

 

Após a morte de nosso amigo ancião Blake, os livros foram dispersos, as histórias perderam os fios de Ariadne e os monstros que mastigavam as entranhas dos que liam deixaram de existir. O salto para o abismo se deu entre a realidade e a ficção. (*) Assim, o bicho raivoso da vaidade desumanizou e fez das suas noites outras bocas, outros corpos.

A reação humana rasgou o tempo, cortou as letras, os segredos, as palavras, o gosto e as fotos. Não bastasse devorou o próprio coração, assim como Rimbaud, lentamente. Reconstruirá um Frankenstein somente amado por seu criador ou uma Alma Mahler inflável e amada por Kokoschka?

Alma Margaretha Maria Schindler ou Alma Mahler-Werfel (1879-1964) de Oscar Kokoschka (1886-1980). A boneca Alma Mahler. Projeto/desenho de Kokoschka para a feitura em tamanho natural s/d.

Da pedra bruta brotou uma flor rara. Da brutal fragilidade nasceu um vento forte para as ondas de um mar tempestuoso.

“Agora

não navega

nem tampouco vive

erra

se

escrito”

( C. Vogt, Marinheiro Pessoa**)


Louise Bourgeois (1911–2010) Cama azul, 1998 gravura 49,5 x 67,3 cm.

Nota:

(*) Foucault: “A ficção consiste não em fazer ver o invisível, mas em fazer ver até que ponto é invisível a invisibilidade do visível.” (Foucault, 1990)

 (**) Carlos Vogt. O Itinerário do Carteiro Cartógrafo – Cantografia. São Paulo: Massao Ohno, 1982.

 

 

A Fé de Clarice

21 jan

por Gisele Miranda & Lia Mirror

“Andar com fé eu vou

que que a fé não costuma faiá

A fé tá na maré (…)

A fé também tá pra morrer

Oh oh

Triste na solidão…”

Gilberto GIL (1942-), Andar com Fé, 1982.

Tristes mares dessa escrita que rasga e insurge das profundezas. Onde a Fé oscilou, Gilberto Gil cantou e fez Kofi Annan (1938-2018), tocar e dançar no encontro de culturas irmãs (brasileira e ganesa), numa ação que moveu os representantes humanitários do mundo, onde todos se levantaram para aplaudir, dançar e entender um pouco da História do Brasil e da África. Na época, Kofi Annan era secretário geral da ONU (de 1997 a 2006) e vencedor do Nobel da Paz em 2001; e Gilberto Gil, Ministro da Cultura do Brasil e embaixador da Onu para a agricultura e alimentaçõa  (de 2003 a 2008).

E pensar que Gil e muitos, de 1964 a1985, foram presos, muitos torturados, alguns sobreviveram com sequelas, outros morreram ou desapareceram.  Os vinte e um anos de Ditadura Militar no Brasil foram resgatados pela Comissão da Verdade, que nasceu em 2011. O grande passo nos aproximou dos nossos irmãos Argentinos através da luta e reconhecimento das Avós da Praça de Maio (desde 1977); dos Uruguaios, pelo reconhecimento da luta política de Pepe Mujica (1935 -). É uma lição, saber do duro isolamento e da resistência de Mujica, que nos remete também a prisão de Nelson Mandela (1918- 2013) – e uma história que também é nossa.

As Fakenews acionaram seus canais de esgotos e fizeram da nossa Comissão da Verdade “uma paz sem voz, que não é paz é medo”. (1) A violência endógena de nossa História do Brasil abriu as feridas de séculos. Um país em que os professores apanham do Estado, tornou-se um marco histórico de 29 de abril de 2015, em Curitiba. Depois disso, tivemos um presidente que cuspiu no tributo da família Rubens Paiva, insultou a mulher que todas nós somos, Maria do Rosário e Maria da Penha. A virulência personificada atiçou a misoginia desse país recalcado pelo ‘coronelismo’, visto e ouvido em rede nacional, em plenos jogos olímpicos, em 2016, em um coral que até hoje dói, reverbera e que abriga o alto índice de feminicídio.  Através de um coro misógino tiraram uma grande mulher presidente, violentada e difamada duas vezes na História do Brasil.

Quem mandou matar MARIELLE FRANCO (1979-2018)? Somado a isso, uma pandemia mundial frente ao negacionismo presidencial: – “E dai?”, pergunta o genocida do Brasil aliado ao estadunidense Trump – os dois negacionistas são responsáveis pelas duas primeiras colocações no ranking de mortos.

Os EUA se livraram do genocida deles. No Brasil, a República sobreviveu ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e a tentativa de golpe dos fanáticos que ignoram as feridas crônicas de nossa História e que querem mais sangue, mais mortes, mais armas, mais torturas.

Quem são os humanos que podem ser chamados de humanos? “Vidas negras importam”, lá nos EUA, aqui e em todo mundo humano. Tudo nos afeta, sem afeto, sem memória, sem história e “uma classe média” mais violenta do que nunca, que ora se esconde e ora mata – mata o filho da empregada, alimentado pelo colonialismo, pelo racismo, enfim, tudo calcado em um neofascismo.

Esse neofascismo (em sua terceira fase) tem a raiz conceitual no salazarismo, no franquismo, no ‘varguismo’ e no pós Segunda Guerra Mundial, deu origem ao neonazismo. Contudo sua temporalidade é outra, seus personagens e valores históricos são outros. Podemos pensar o conceito e ampliarmos à virtualidade fascista de 2020-2023 e os novos núcleos de combate. O neofascismo pertence as sociedades democráticas e capitalistas, algumas frágeis e em  processos democráticos.

Quais os movimentos atuais que são alvos e resistem? Por que resistem? – Resistem as mortes. A quem resistem?  – a quem MANDOU MATAR!

A política alt-right vem promovendo: “o racismo e a supremacia branca; a misoginia, o sexismo e condutas LGBTQfóbicas; o autoritarismo, a recuperação idealizada de uma ordem passada e discursos genocidas” (2). Essa política é a face do neofascismo. E quando tudo isso vem agregado às ‘rachadinhas’ ou do assalto histórico do Estado? As lutas foram divididas em grupos específicos, mas os neofascistas não dividiram suas bandeiras.

Estamos em guerra (fria). No meio do discurso da política de segurança nacional há superencarceramento. Na política antiterrorista há xenofobia. Já não respiramos porque a polícia mata, a milícia mata. O vírus mata e o político manda matar.

Quem deve morrer? Quem pode viver? As respostas tem muito do devir negro no mundo. No Brasil o devir negro é a resposta para quem morre, porque existe a política colonizadora. Como uma sociedade Democrática se comporta com tanta desumanidade histórica? -“o levante antirracista e antipolícia, nada mais é do que uma autodefesa em meio à necropolítica securitária…” (3) Vidas indígenas importam. Vidas negras importam.

Subnotificações são descartes da vida em regiões periféricas; os desempregados tem status de emprego informal para não contabilizar o altíssimo desemprego. As famílias estão morando nas ruas. Nas ruas e nos transportes públicos as pessoas clamam por comida. Pessoas oferecendo seus CVs e vendendo balas em coro: “por favor, me ajudem!” Nós choramos e escrevemos; as aulas tem sido nas ruas, nos trens, no repente necessário porque as vozes não podem calar.

Somado a tudo isso, a tragédia dos refugiados, 80 milhões de pessoas perseguidas por questões políticas, religiosas e étnicas. Entre as nações que mais geraram refugiados, está a Venezuela. A Turquia, outrora negacionista do massacre Armênio, tornou-se o país que mais acolhe refugiados. A Alemanha, outrora genocida nazista, “tem aberto o país para o acolhimento de refugiados e busca inserí-los na sociedade alemã.” (4)

O mundo está uma loucura. Nossas resistências tem sido um devir Clarice Lispector (Chechelnyk, Ucrânia, 1920- Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1977), pois estamos “atrás do que fica atrás do pensamento” (5)… tecendo a vida com a própria coragem e com A fé de Clarice: porque ela sabe quanto importa o outro, ela sabe pedir, ela sabe rezar. (6)

Gordon Matta-Clark (NY, EUA, 1943-Idem, 1978) Veículo de transportar Oxigênio, 1972.


(1) Rappa, Minha Alma (A paz que não quero), 1999. Alexandre Menezes, Lauro de Farias, Marcelo Lobato, Marcelo Falcão, Marcelo Nascimento Vi Santana. https://www.youtube.com/watch?v=dixEvTzhlaY&ab_channel=ORappa; Sobre a violência aos professores em 29 de abril de 2015 https://tecituras.wordpress.com/2015/06/24/da-31a-bienal-de-sao-paulo-como-coisas-que-nao-existem-a-29-de-abril-de-2015/

(2) Acácio Augusto. Cem anos depois, um novo fascismo. In: CULT, Ano 24, janeiro 2021, p. 9.

(3) Camila Jourdan. Quando vidas são descartáveis, nenhuma vida é um valor em si. In: CULT, Ano 24, janeiro 2021, p. 15.

[4] Alex Ricciard. “onde está meu irmão sem irmã, meu filho sem pai ? In: Revista Aventuras na História – A crise dos Refugiados, Dezembro de 2020, p. 36. 

(5) Evando Nascimento. O humano e o não humano, p. 27. In: Cult Clarice Lispector, ano 23, dezembro 2020, edição 264. Edição primorosa coordenada por Daysi Bregantini.

(6) Marcela Lordy. Por que amamos Clarice, p. 51. In: Cult Clarice Lispector, ano 23, dezembro 2020, edição 264.

Significa- ação

11 maio

Fotografias de Cícero Leitão

(Curadoria e texto de Lia Mirror)

 

Quando as borboletas começarem a partir é sinal que alguma coisa aconteceu… talvez os ventos… remoinhos…Talvez a chuva… tempestade. (Cícero Leitão)

 

 

Cícero partiu. Mas retornou para fotografar reminiscências de Juá, no município de Itaueira, Piauí. Ao passar por ali viu dois passarinhos.

Cícero Leitão, Meninos, 2010/2011

– “muitos passaram, mas eu passarinho” (disse o mais travesso reverberando Mário Quintana)

A passarinha maior fitou aquele olhar que diz, como outrora disse, a menina afegã, que Steve McCurry registrou em 1985. (1)

A lavadeira do rio Itaueira canta e se encanta com Cartola!

“…Ensaboa mulata, ensaboa
Ensaboa. Tô ensaboando…
Tô lavando a minha roupa!…” (2)

Cícero Leitão, Lavadeira do Rio Itaueira, 2010-2011

Quando se olha por todos os lados… seu Benvindo sorri e pica o fumo como os Caipiras de Almeida Jr. Mesclando o final do século 19, sob tintas e pincéis; e sob o olhar em preto e branco do século 21.

Cícero Leitão, Bem-vindo! 2010-2011

Meus olhos  (agora ) são seus olhos!

Dona Coló em seus vividos 97 anos recita Cora Coralina: Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.

Cícero Leitão, Dona Coló, 2010-2011

Lá em Itaueira “passou um sábio. Depois um soldado e mais tarde um homem do povo. Sucessivamente ocuparam o horizonte um poeta, um leão, um tigre e um pequeno redemoinho de areia… ” (Klintowitz, Significação, 1982)


(2)  Cartola com sua filha Creusa cantam Ensaboa


Série Emmanuel Nery VII: Velhice

9 jun

Por Gisèle Miranda

 

Historicizar a imagem em sua potência múltipla possibilita frutos pelo estímulo à memória, pelo promulgar do diálogo que conduz a instauração da documentação, da tradição, do comemorativo, do monumento à preservação e quiçá, a imortalidade.

Possibilita também que em cada tempo haja um olhar diferenciado, questionador que dialogue por entre temáticas, formas e cores. Cada obra, filha de seu tempo, mesmo que esse tempo pareça inconcebível, inquietante, irrepreensível.

Em uma sociedade de injustiças, de descaso e despreparo para absorver o melhor que a maturidade nos traz,  as instituições e núcleos familiares ainda tem um amorfo olhar sobre o envelhecimento, e no que tange às condições de vida ou aos direitos elementares da cidadania esta população é credora de uma incomensurável dívida social. (Montenegro, 1992, p. 14)

Os estímulos a construção são maiores do que os estímulos a preservação e por conta da falta de políticas públicas, entre inúmeras ações institucionais aos pequenos núcleos familiares, a velhice para muitos ainda é sinônimo de inutilidade, ou seja, o tempo transcorrido, o saber adquirido, as experiências tornam-se memórias ao lixo, do lixo dos sem memórias.

Nos percalços da velhice, aquém da questão de saúde, estão perdidos os sinais de reconhecimento, de pertencimento – a praça, o coreto, as linhas de trens, as fachadas, as ruas. A memória é uma noção que legitima como cultura vivida e na qual cada experiência passada é uma virtualidade aberta. Estendendo a dimensão da memória, estende-se proporcionalmente a da imaginação. (Argan, 1992, p. 67-68)

Emmanuel Nery (RJ, 1931-RJ, 2003), Velhice, 1986, óleo s/tela 60 X 50 cm

A tríade que aparece representada na obra de Emmanuel Nery – duas mulheres e um homem marcam ao primeiro olhar social, a morbidez dos corpos quase derretidos pelo tempo.

O idoso não é assexuado, pulsa-lhe vida, portanto, desejos. E, por outro ângulo, o pintor não deve educar somente os olhos, é alma sobretudo tornar capaz de pesar. (Leclaire, 1996, p. 65)

A cor é uma preponderante nos trabalhos de Emmanuel Nery, por isso, cabe o destaque da cor branca, que age em nossa alma como silêncio absoluto. Esse silêncio que não é morto, ele transborda de possibilidades vivas. (Kandinsky, 1990, p. 89)

Apesar da cor branca praticamente inexistir em seus trabalhos, o pouco inserido em seus quadros referenda o tempo – o tempo passado. Vale o destaque de parte do poema Branco de Emmanuel Nery:

Luzes brancas,

Que não iluminam

– Só clareiam.

… Branco estéril.

…Branco da máxima produção.

Sem trabalho

Ou lazer.

… Branco asfixiante.

…Nos brancos

Vazando as últimas cores.

(Nery, 1987, p. 86)

Referências:

ARGAN, G. C. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

KANDINSKY, N. Do espiritual na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

LECLAIRE, S. Psicanalisar. São Paulo: Perspectiva, 1986. (Coleção Debates, 126)

MONTENEGRO, A. T. História oral e memória: a cultura popular revisitada. São Paulo: Contexto, 1992. (Caminhos da História)

NERY, E. Forças Contrastantes. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.