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Artistas Solidários e os Museus de Resistências

4 nov

por Gisele Miranda

Ninguém será o mesmo depois de ter contemplado os quadros de Netto (…) se é poderoso abalará seu poder. Se é alienado sairá modificado. Se é alguém comprometido com a História, reafirmará sua posição e seu engajamento. Ele se comunica com todos (…) mas a obra não se comunica com os vencidos pois estes já perderam os olhos para ver as cruezas e as belezas da vida. As figuras humanas da obra de Gontran são reais – São seres humanos do Brasil, do Paraguai, da Bolívia, da Venezuela, do Chile, do Peru, da Colômbia, da África (…) Meus Deus, nós os vemos por toda a parte onde a riqueza está retida nas mãos de uma elite. (ABRAMO, Radha. Manuscrito, Paris, ago. 1982. Arquivo GGN/GM)

Em 1978, Gontran Netto (1933-2017), Julio Le Parc (1928-), Roberto Matta (1911-2002), Claude Lazar (1947-), entre outros artistas, realizaram a exposição International Art Exhibition for Palestine no Líbano durante a guerra civil (1975-1990), na Universidade Árabe de Beirute sob curadoria da artista Mona Saudi (1945-).

A pintura que Gontran doou foi destruída em 1982, em Beirute. Os bombardeios destruíram parte do local em que estavam algumas obras para a criação do Museu de Resistência da Palestina.

Em 2015, o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, MACBA, realizou uma exposição sobre a International Art Exhibition for Palestine de 1978. A exposição Desassossego do Passado, curadorias de Rasha Salti e Kritine Khouri, foi a partir de narrativas da “história perdida da exposição de 1978.” De Barcelona, a exposição seguiu para Berlim em 2016; “em 2017, Roma, Paris, Cidade do Cabo, Tóquio, Chile e Beirute”. (Institute for Palestine Studies, 27 nov. 2015)

Na década de 1980, Gontran se engajou contra o racismo através da exposição coletiva denominada 100 artistes contra le racismo. Ele pintou a Série contra o Apartheid para a criação de mais um Museu de Resistência organizado pelos artistas Ernest Pignon-Ernest, Antonio Saura e pelo filósofo Jacques Derrida que escreveu o ensaio Racism’s Last Word denunciando o Apartheid sob as leis do Ocidente sem sanções ou embargos.

Durante esse movimento, a África do Sul institucionalizou o preconceito racial através de prisões, torturas e assassinatos, tendo consolidado a segregação desde 1947. Em 1993, uma nova Constituição levou, em 1994, à presidência da República da África do Sul, Nelson Mandela ou como era carinhosamente chamado, Madiba, preso injustamente por 27 anos.

A arte do catálogo e do poster de Art contre/against Aparth ficou a cargo do artista gráfico Klaus Staeck. Todos os nomes dos participantes estão no entorno da representação do continente africano – os artistas solidários, exilados e apátridas.

A primeira exposição ocorreu em Paris (1983), depois viajou para várias partes do mundo, representados por Pignon-Ernest, Antonio Saura, Joe Tilson, Roy Lichtenstein, Gontran Guanaes Netto, Julio Le Parc, Sol LeWitt, Christian Boltanski, Donald Judd, Robert Motherwell, Claes Oldenberg, Tom Phillips, Larry Rivers, James Rosenquist, Pierre Soulages, Robert Rauschenberg, Valente Ngwenya Malangatana, Paul Rebeyrolle, Gavin Jantjes, entre outros. Todo esse movimento visava a conscientização e apoio para que o apartheid fosse tratado como prioridade humanitária sem a cegueira dos líderes do mundo.

Em 1986 e 1987, mais duas exposição contra o Apartheid: ART contre/against APARTHEID, organizada pela L’Association Art et Culture contre l’Apartheid.

A Liberdade Guia o Povo

1 nov

por Gisele Miranda

Gontran Netto (1933-2017) pintou a Liberdade guia o Povo, em 1989, na estação do Metrô de São Paulo, Mal. Deodoro. É uma releitura da obra de Delacroix, A Liberdade guiando o Povo, de 1830. São duas as representações de Marianne. Concomitante, reverenciou os 200 anos da Revolução Francesa (1789-1989) e sua importância histórica.

Fig. 1: Gontran Guanaes Netto. A Liberdade guia o Povo: painel Marianne I, 1989. Óleo sobre madeira, 2,0 m x 2,0 m. Acervo do Metrô da cidade São Paulo, estação Marechal Deodoro, SP, Brasil.

Ele também pintou a escrita da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão:

– Mas, Gontran, são 17 artigos, por que em francês?

– Porque é a língua original, Gisele! Para que serve a internet? (Gontran Netto, áudio, 24 abr. 2005. Arquivo GGN/GM)

Próximos a Declaração estão as pinturas de retratos de alguns líderes históricos, lá estão, entre outros, Salvador Allende (1908-1973), Fidel Castro (1926-2016), Nelson Mandela (1918-2013), Carlos Lamarca (1937-1971), Carlos Marighella (1911-1969), Luís Carlos Prestes (1898-1990), Olga Benário Prestes (1908-1942), Yasser Arafat (1929-2004).

Arafat foi inserido em 2011, durante a restauração dos painéis para abrir as discussões sobre os conflitos entre palestinos e israelenses. Gontran ajudou a criar o Museu de Resistência da Palestina, em 1978, entre outros artistas solidários. Ele doou uma pintura que foi destruída, em 1982, durante o cerco israelense em Beirute.

Fig. 2: Gontran Guanaes Netto. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1989 (parte I dos três paineis) Óleo sobre madeira, 2,0 m x 2,0 m. Acervo do Metrô da cidade São Paulo, estação Marechal Deodoro, SP, Brasil.

A Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade foram discutidas e construídas por meses no próprio metrô e em um praça em frente à estação, das 5:00 às 17:00. Dessa forma, consagrou os rostos dos trabalhadores que diariamente utilizavam o transporte. Essa aproximação resultou em cartas e em palavras de agradecimentos.

Fig. 4: Gontran Guanaes Netto (1933-2017) Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1989 (os três paineis superiores) Óleo sobre madeira, 2,0 m x 2,0 m. Arte no Metrô da cidade São Paulo, estação Mal.
Deodoro, Arquivo GGN/GM.

A solicitude de Gontran em estar orientando, conversando, debatendo – o rejuvenesceu, pois ali ele foi o professor e o artista, vinte anos depois de seu exílio político na França. Naturalmente, ele se tornou uma referência para os jovens interessados em pintar e desenhar. Nesse processo, o artista conheceu uma moça chamada Henriette:

Ela fazia uns desenhos sombrios. O que pude arrancar dela, depois de um bom tempo, é que ela morava sozinha e não conseguia terminar o curso universitário.” (GGN, áudio, 27 nov. 2002. Arquivo GGN/GM)

Henriette escreveu uma carta que o artista fez questão de ler em voz alta, quinze anos depois da obra realizada com o pedido de incorporação dessa memória ao referenciar as pinturas da estação.

“A Guernica Tupiniquim.

Estava conversando com meu amigo pintor e comentamos sobre o processo dinâmico da vida. Tocamos no ponto nevrálgico da questão. Tenho me sentido tão desmotivada, sem direcionamentos…, talvez estejamos todos a procura de respostas. O ponto crucial é, vendo-o atuante, interessado nas coisas que acontecem a sua volta, pessoas que chegam curiosas atraídas pelas cores fortes de seus trabalhos cujos personagens parecem saltar delas para a nossa realidade. Sinto saudades do tempo em que tínhamos esperanças. O tema, o enfoque principal é a liberdade, retratada simbolicamente por uma mulher em atitude de desafio, seja pelo busto nu ou pelas armas e bandeira que (…) Sua figura altaneira forte parece convocar a ação e animada por uma força centrífuga acolhendo os que a procuram em busca de seus mais íntimos e inesquecíveis (…) A mensagem está bem clara no primeiro mural, no segundo já em outro momento sobre o fogo avassalador da batalha portando ainda armas e estandartes cobrem a retaguarda um pequeno exército meio aturdido. Desconhecem, talvez, a própria coragem. Artefatos de guerra tem somente as ferramentas do trabalho demonstrando os quão desesperados e desprotegidos caminham em busca de seus sonhos tão caros quanto antigos, cada vez mais, desviadamente distantes. Arquétipos incontestáveis do nosso tempo, nossa pátria carrega os olhares de uma imensa tristeza: implorar compreensão. São olhos inocentes isentos do brilho do ódio e da raiva racional que costumam impelir os desesperançosos às lutas sem papel, à violência desnecessária. Parecem ser as únicas armas infelizmente capazes de fazer frente à senha devoradora dos exploradores fantasiados de políticos, empresários, latifundiários (…) Dirigentes de um país exaurido pela sangria desenfreada iniciada no seu descobrimento que nunca cessa. Ainda hoje sangra, seus filhos sangram, como os destinos comuns de ambos devessem se encontrar numa imensa chaga aberta. Empresta-se uma solidariedade hipócrita a África, nosso grande espelho. Seus filhos tiveram aqui sua iniciação na escravidão mais aviltante. Teve seu sangue vergonhosamente misturado ao nosso no altar macabro do mesmo sacrifício… de acusação eterna contra a prepotência dos que se julgam poderosos e alicerçados na impunidade. Fraticidas, aproveitadores e demagogos (…) A história, caprichosamente tem mostrado a esses vampiros cegos que têm também pescoços frágeis, veja por exemplo a queda da bastilha (…) Não precisamos nem portar bandeiras, diga-se de passagem. Quem tem boa memória ou sabe ler nas entrelinhas venha me fazer desmentir se puder.” (Gontran Netto, áudio, 27 nov. 2002. Uma parte da Carta de Henriette Lima a Gontran, 1989/1990. Arquivo GGN/GM)

Após a leitura rememorou que pouco depois da carta, Henriette foi buscar o alicate que havia emprestado.

Ela veio meio sisuda buscar o alicate. Olhei para ela e pensei, tem coisa grave aí. No outro dia veio a vizinha de Henriette; ela foi descoberta morta. Foi uma crise de diabete. Mas não foi, eu não acredito. Foi um suicídio. A vizinha veio me chamar para o velório porque disse que não tinha ninguém no velório. Todos da praça foram ao velório. Quando ela pediu o alicate era a ligação dela com o mundo e comigo. (Gontran Netto, áudio, 27 nov. 2002. Arquivo GGN/GM)