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O último Poema

2 nov

por Gisele Miranda

Por causa do estupro cometido pelos torturadores, eu fiquei grávida e abortei na cadeia. Sofri choques elétricos, fui pendurada, posta no pau de arara, “submarinos” [ameaça de afogamento], simulação de fuzilamento, queimaduras com charutos (…) sofri estupro e assédio sexual com cães, a introdução de ratos vivos pela vagina e todo o corpo.

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Obrigaram-me a ter relações sexuais com meu pai e irmão que estavam detidos. Também a ver e escutar as torturas de meu irmão e pai. Puseram-me na churrasqueira, fizeram cortes com facão na minha barriga. Eu tinha 25 anos.

(Relatos à Comissão da Verdade do Chile, 1990-1991/2004-2005: apuração dos crimes cometidos de 1973 a 1990. El País, Santiago, 11 set. 2019.)

Pouco antes do golpe militar no Chile, em 1973, o Museu de Arte Moderna foi pensado entre 1971-72, pelo então presidente Allende (1908-1973), a partir dos proponentes intelectuais e artísticos de vários países sob a liderança de Mario Pedrosa (1900-1981). No entanto, o Museu tomou um rumo diferente após o golpe militar, passando a ser um Museu de Resistência e Solidariedade. Gontran Netto (1933-2017) colaborou com a doação de “La Prière” (1), em 1973, concomitante, pintou “Chile 1973”

Gontran Guanaes Netto. “Chile 1973″. Óleo sobre tela 70 x 140 cm. Acervo da família/ Arquivo GGN/GM.

Com a morte de Allende, em 1973, o ditador Augusto Pinochet alinhou-se a um domínio sul-americano de muitas mortes. De 1973 a 1990, Pinochet manteve-se com um discurso neoliberal de privatizações e da educação controlada coadunada à visão do golpe; paralelamente, manteve estreitos laços com a Colonia Dignidad (fundada em 1961), comandada por um ex. suboficial nazista, Paul Schäfer. No local, praticavam-se estupros em crianças e mulheres. Os jovens presos políticos transferidos à Colonia tornavam-se cobaias para experimentos.

Os relatos de torturas são também calcados na experiência ditatorial do Brasil, desde 1964. Podemos incluir o Paraguai de 1954-1989, Bolívia de 1964-1982, o Peru de 1968-1980 e o Uruguai de 1973- 1985, três meses antes do Chile.

O artista Víctor Jara (1932-1973), professor de artes cênicas, poeta, músico tornou-se uma referência histórica e memorial sobre a violência durante a ditadura militar de Pinochet. Víctor foi um dos professores, junto com os alunos a ocupar a Universidade Técnica do Estado (UTE). Com um violão, ele cantou até ser detido e levado ao famoso campo de concentração do regime, o Estadio Chile, que em 2003, passou a se chamar Estadio Víctor Jara – marco de resistência contra o período da ditadura militar.

Testemunhas que estiveram com Víctor Jara no dia 16 de setembro de 1973, relataram à Comissão da Verdade que antes dele ser assassinado a tiros, os algozes  destruíram as suas mãos e lhe deram um violão para tocar.

Horas antes do ocorrido, Víctor conseguiu um papel e uma caneta com um amigo também detido no Estádio. Víctor Jara escreveu seu último poema.

Somos cinco mil

nesta pequena parte da cidade. Somos cinco mil.

Quantos seremos no total, nas cidades e em todo o país?

Somente aqui, dez mil mãos que semeiam e fazem andar as fábricas.

(…) Seis de nós se perderam

no espaço das estrelas.

Um morto, um espancado como jamais imaginei que se pudesse espancar um ser humano.

(…) Que espanto causa o rosto do fascismo! Colocam em prática seus planos com precisão arteira, sem que nada lhes importe.

O sangue, para eles, são medalhas. A matança é ato de heroísmo.

(…) O sangue do companheiro Presidente golpeia mais forte que bombas e metralhadoras. Assim golpeará nosso punho novamente.

Como me sai mal o canto

quando tenho que cantar o espanto! (…) O que vejo nunca vi,

o que tenho sentido e o que sinto fará brotar o momento (…)”

(Victor Jara, Estádio de Chile, 16 setembro de 1973). (2)

O último poema de Víctor Jara se transformou no Festival anual Víctor Jara, ou seja, cultura, educação, arte, história e memória do Chile Livre.

No mais, há de se debruçar sobre o tempo de apuração e os testemunhos. No Chile a Comissão da Verdade se deu no final da Ditadura Militar. No Brasil, a Comissão da Verdade se deu após vinte e sete anos após o término da ditadura.

Em 1991, um ano após a saída de Pinochet, a Comissão da Verdade do Chile apurou 3.065 mortes de jovens e 40 mil pessoas torturadas. Foram 17 anos de lavagens de dinheiro público e tráfico de cocaína no Exército. Pinochet manteve-se intocável até ser preso, aos 82 anos, em Londres enquanto tratava de problemas de saúde. Ele ficou em cárcere  domiciliar por crimes contra a humanidade. Em 2018, por decisão da justiça chilena, a família de Pinochet devolveu parte do dinheiro roubado dos cofres públicos do Chile.

(1) Sobre “La Prière” ou “A Oração” V. Série Retecituras V: Gontran Guanaes Netto e o seu manifesto pelo Chile https://tecituras.wordpress.com/2010/08/17/serie-retecituras-v-gontran-guanaes-netto-e-o-seu-manifesto-pelo-chile/

(2) “Somos cinco mil aquí. En esta pequeña parte de la ciudad. Somos cinco mil. ¿Cuántos somos en total
en las ciudades y en todo el país? Somos aquí diez mil manos
que siembran y hacen andar las fábricas. ¡Cuánta humanidad
con hambre, frío, pánico, dolor,
presión moral, terror y locura! Seis de los nuestros se perdieron
en el espacio de las estrellas. Un muerto, un golpeado como jamás creí
se podría golpear a un ser humano. Los otros cuatro quisieron quitarse todos los temores,
uno saltando al vacío,
otro golpeándose la cabeza contra el muro,
pero todos con la mirada fija de la muerte. ¡Qué espanto causa el rostro del fascismo! Llevan a cabo sus planes con precisión artera sin importarles nada.
La sangre para ellos son medallas.
La matanza es acto de heroísmo. ¿Es éste el mundo que creaste, Dios mío?
¿Para esto tus siete días de asombro y trabajo? En estas cuatro murallas sólo existe un número que no progresa.
Que lentamente querrá la muerte. Pero de pronto me golpea la consciencia
y veo esta marea sin latido
y veo el pulso de las máquinas
y los militares mostrando su rostro de matrona lleno de dulzura.¿Y Méjico, Cuba, y el mundo?
¡Qué griten esta ignominia! Somos diez mil manos que no producen.
¿Cuántos somos en toda la patria? La sangre del Compañero Presidente
golpea más fuerte que bombas y metrallas. Así golpeará nuestro puño nuevamente.
Canto, que mal me sales
cuando tengo que cantar espanto. Espanto como el que vivo, como el que muero, espanto. De verme entre tantos y tantos momentos del infinito
en que el silencio y el grito son las metas de este canto. Lo que nunca vi, lo que he sentido y lo que siento
hará brotar el momento.”

A Liberdade Guia o Povo

1 nov

por Gisele Miranda

Gontran Netto (1933-2017) pintou a Liberdade guia o Povo, em 1989, na estação do Metrô de São Paulo, Mal. Deodoro. É uma releitura da obra de Delacroix, A Liberdade guiando o Povo, de 1830. São duas as representações de Marianne. Concomitante, reverenciou os 200 anos da Revolução Francesa (1789-1989) e sua importância histórica.

Fig. 1: Gontran Guanaes Netto. A Liberdade guia o Povo: painel Marianne I, 1989. Óleo sobre madeira, 2,0 m x 2,0 m. Acervo do Metrô da cidade São Paulo, estação Marechal Deodoro, SP, Brasil.

Ele também pintou a escrita da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão:

– Mas, Gontran, são 17 artigos, por que em francês?

– Porque é a língua original, Gisele! Para que serve a internet? (Gontran Netto, áudio, 24 abr. 2005. Arquivo GGN/GM)

Próximos a Declaração estão as pinturas de retratos de alguns líderes históricos, lá estão, entre outros, Salvador Allende (1908-1973), Fidel Castro (1926-2016), Nelson Mandela (1918-2013), Carlos Lamarca (1937-1971), Carlos Marighella (1911-1969), Luís Carlos Prestes (1898-1990), Olga Benário Prestes (1908-1942), Yasser Arafat (1929-2004).

Arafat foi inserido em 2011, durante a restauração dos painéis para abrir as discussões sobre os conflitos entre palestinos e israelenses. Gontran ajudou a criar o Museu de Resistência da Palestina, em 1978, entre outros artistas solidários. Ele doou uma pintura que foi destruída, em 1982, durante o cerco israelense em Beirute.

Fig. 2: Gontran Guanaes Netto. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1989 (parte I dos três paineis) Óleo sobre madeira, 2,0 m x 2,0 m. Acervo do Metrô da cidade São Paulo, estação Marechal Deodoro, SP, Brasil.

A Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade foram discutidas e construídas por meses no próprio metrô e em um praça em frente à estação, das 5:00 às 17:00. Dessa forma, consagrou os rostos dos trabalhadores que diariamente utilizavam o transporte. Essa aproximação resultou em cartas e em palavras de agradecimentos.

Fig. 4: Gontran Guanaes Netto (1933-2017) Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1989 (os três paineis superiores) Óleo sobre madeira, 2,0 m x 2,0 m. Arte no Metrô da cidade São Paulo, estação Mal.
Deodoro, Arquivo GGN/GM.

A solicitude de Gontran em estar orientando, conversando, debatendo – o rejuvenesceu, pois ali ele foi o professor e o artista, vinte anos depois de seu exílio político na França. Naturalmente, ele se tornou uma referência para os jovens interessados em pintar e desenhar. Nesse processo, o artista conheceu uma moça chamada Henriette:

Ela fazia uns desenhos sombrios. O que pude arrancar dela, depois de um bom tempo, é que ela morava sozinha e não conseguia terminar o curso universitário.” (GGN, áudio, 27 nov. 2002. Arquivo GGN/GM)

Henriette escreveu uma carta que o artista fez questão de ler em voz alta, quinze anos depois da obra realizada com o pedido de incorporação dessa memória ao referenciar as pinturas da estação.

“A Guernica Tupiniquim.

Estava conversando com meu amigo pintor e comentamos sobre o processo dinâmico da vida. Tocamos no ponto nevrálgico da questão. Tenho me sentido tão desmotivada, sem direcionamentos…, talvez estejamos todos a procura de respostas. O ponto crucial é, vendo-o atuante, interessado nas coisas que acontecem a sua volta, pessoas que chegam curiosas atraídas pelas cores fortes de seus trabalhos cujos personagens parecem saltar delas para a nossa realidade. Sinto saudades do tempo em que tínhamos esperanças. O tema, o enfoque principal é a liberdade, retratada simbolicamente por uma mulher em atitude de desafio, seja pelo busto nu ou pelas armas e bandeira que (…) Sua figura altaneira forte parece convocar a ação e animada por uma força centrífuga acolhendo os que a procuram em busca de seus mais íntimos e inesquecíveis (…) A mensagem está bem clara no primeiro mural, no segundo já em outro momento sobre o fogo avassalador da batalha portando ainda armas e estandartes cobrem a retaguarda um pequeno exército meio aturdido. Desconhecem, talvez, a própria coragem. Artefatos de guerra tem somente as ferramentas do trabalho demonstrando os quão desesperados e desprotegidos caminham em busca de seus sonhos tão caros quanto antigos, cada vez mais, desviadamente distantes. Arquétipos incontestáveis do nosso tempo, nossa pátria carrega os olhares de uma imensa tristeza: implorar compreensão. São olhos inocentes isentos do brilho do ódio e da raiva racional que costumam impelir os desesperançosos às lutas sem papel, à violência desnecessária. Parecem ser as únicas armas infelizmente capazes de fazer frente à senha devoradora dos exploradores fantasiados de políticos, empresários, latifundiários (…) Dirigentes de um país exaurido pela sangria desenfreada iniciada no seu descobrimento que nunca cessa. Ainda hoje sangra, seus filhos sangram, como os destinos comuns de ambos devessem se encontrar numa imensa chaga aberta. Empresta-se uma solidariedade hipócrita a África, nosso grande espelho. Seus filhos tiveram aqui sua iniciação na escravidão mais aviltante. Teve seu sangue vergonhosamente misturado ao nosso no altar macabro do mesmo sacrifício… de acusação eterna contra a prepotência dos que se julgam poderosos e alicerçados na impunidade. Fraticidas, aproveitadores e demagogos (…) A história, caprichosamente tem mostrado a esses vampiros cegos que têm também pescoços frágeis, veja por exemplo a queda da bastilha (…) Não precisamos nem portar bandeiras, diga-se de passagem. Quem tem boa memória ou sabe ler nas entrelinhas venha me fazer desmentir se puder.” (Gontran Netto, áudio, 27 nov. 2002. Uma parte da Carta de Henriette Lima a Gontran, 1989/1990. Arquivo GGN/GM)

Após a leitura rememorou que pouco depois da carta, Henriette foi buscar o alicate que havia emprestado.

Ela veio meio sisuda buscar o alicate. Olhei para ela e pensei, tem coisa grave aí. No outro dia veio a vizinha de Henriette; ela foi descoberta morta. Foi uma crise de diabete. Mas não foi, eu não acredito. Foi um suicídio. A vizinha veio me chamar para o velório porque disse que não tinha ninguém no velório. Todos da praça foram ao velório. Quando ela pediu o alicate era a ligação dela com o mundo e comigo. (Gontran Netto, áudio, 27 nov. 2002. Arquivo GGN/GM)