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Série Retorno III: O medievo ocultado

30 ago

por Gisele Miranda

 

Os historiadores Georges Duby (1919-1996) e Jacques Le Goff  (1924-2014) chegaram a aproximar as imagens do medievo da peste para a atualidade da Aids. Hilário Franco Jr. (1948-) nos trouxe o país imaginário de Cocanha associado aos desejos e aos confrontos. O amor cortês, dos trovadores aos amores impossíveis.

O cavalo como simbiose do cavaleiro; perseguições a judeus, ciganos e demais práticas religiosas que não fizessem parte do Cristianismo Ocidental; a unção vinculada à divindade hereditária para compor a harmonia entre poderes da Religião e do Estado. Os códigos masculino e feminino inseridos esteticamente, tais como a barba para dar maturidade, cabelos presos às casadas, entre outros.

A juventude que passou a ser bem vista somente com a prática dos cruzados pela fé, antes era temida pelos mitos da inconstância, vulnerabilidade, falta de maturidade. Os jovens foram retratados em pinturas e iluminuras à margem e em tamanhos menores. A cor associativa do jovem era verde – pela dificuldade que se tinha em dominar essa tonalidade.

O tamanho das figuras nas imagens como hierárquico. As mulheres só se destacavam como rainhas ou filhas, porém, menores que a masculina. As imagens marcaram estilos nas vestimentas, além de trazerem uma gama estética de comportamentos para a História da Arte.

Outrora, como discutir a imagem feita para contar, explicar, avisar, alertar sem o culto do belo? Sem a tônica da perspectiva? Sem a oficialidade do artista, pois eram artesãos ou religiosos com habilidades. As imagens tornaram-se linguagens de toda essa atmosfera.

No teatro foi uma válvula propulsora de todas as intenções do poder religioso e reverberações de castas postas em cena no riso e no deboche. Parecia comandado pelo discurso oficial, mas se transformava em comicidade própria e irreverente. Essa comicidade marcou o medievo da oralidade; despontou como atributo popular em meios as proibições da leitura e da escrita. Por mais encaminhamentos que fossem dados aos incitamentos populares e artísticos sempre pendiam ao riso do improviso, do incerto, do intempestivo ao convulsionado.

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Mesmo assim, a imagética medieval foi ignorada pelo seu tom popular, sua imprecisão da forma aliada ao artesanato, sem nenhum refinamento dos considerados gênios do Renascimento ou dos valores clássicos.

O desdém às culturas orais foi contra atacado pelos medievalistas, principalmente nos anos de 1960. No Brasil as atividades tomaram fôlego nos anos de 1980, focando as diversas culturas indígenas.

A Oralidade eclodiu dos trovadores ao Cordel que encantou a arquiteta italiana Lina Bo Bardi (1914-1992) quando se deparou com o nosso artesanato e sua premissa artística no final dos anos 1950 e idos de 1960 no Brasil.

Ariano Suassuna (1927-2014) é uma das referências literárias desse devir “sertão medieval”. Ele capturou para a erudição, a riqueza dos saberes populares em cantorias, nas gravuras, no teatro, na desproporcionalidade do volume, do primitivismo anônimo e da forma improvisada.

Antes de Suassuna, Mário de Andrade (1893-1945), partícipe do grupo Modernista da década de 1920. Mário focou sua atuação na criação da Secretaria de Cultura de São Paulo, na década de 1930, com uma relação de parceria da Antropologia para valorizar os objetos de estudos históricos, culturais e artísticos.

Aos solavancos o culturalista Paschoal Carlos Magno (1906-1980), em um período político complicado às aglomerações de jovens nos anos de 1960/70/80, recriou as Barcas de Lorca em suas Barcas e Caravanas da Cultura.

Que medievo brasileiro é esse que tanto encantou Paul Zumthor e o fez aplaudir a “Cavalaria em Cordel”, a sua teatralização à poética oral?

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Referências

BOLLÈME, Geneviève. O povo por escrito. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BURKE, Peter. O Renascimento Italiano. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.

DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. Tradução Eugênio Michel da Silva & Maria Regina Lucena Borges-Osório. São Paulo: UNESP, 1998.

FERREIRA, Jerusa P. Cavalaria em Cordel: o passo das águas mortas. São Paulo: Hucitec, 1993.

FRANCO JR. COCANHA – a história de um país imaginário. Prefácio Jacques Le Goff. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

LARIOUX, Bruno. A Idade Média à mesa.Lisboa: Francisco Lyon de Castro, 1989.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão; Irene Ferreira & Suzana Ferreira Borges. 2ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992. (Coleção Repertórios)

LE GOFF, J. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: UNESP, 1998.

LINA BO BARDI. (Coord. Marcelo Carvalho Ferraz). São Paulo: Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008.

MADEIRA, Gisele Ou MIRANDA, Gisele. Paschoal Carlos Magno (1906-1980): mosaico de um Culturalista (tese de doutorado/PUC-SP, 2000).

VASSALO, Ligia. O sertão medieval: origens europeias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.

Série Retorno II: Os olhares (colonizadores)

30 ago

 por Gisele Miranda

 

Os artistas viajantes documentaram as características ambientais das novas terras colonizadas como uma aventura ao desconhecido.  Dos países baixos, a presença das pinturas de paisagens, natureza-morta com uma luminosidade muito diferente do Barroco laico das comitivas dos séculos 16 e 17, a exemplo das obras de Frans Post (Haarlem, Holanda, 1612- idem, 1680) e Albert Eckhout (Groninga, Holanda, c. 1610- idem c. 1666).

Outros vieram, a convite da corte real portuguesa, logo após a queda de Napoleão Bonaparte (1815), na comitiva da Missão Artística Francesa (1816), nos remetendo ao Neoclassicismo tardio.

Vindos com a segurança necessária do ofício, os artistas franceses tornaram-se a base da educação na colônia, contudo, com um discurso monárquico subtraído da Europa e que desencadeou, no academicismo amalgamado, a subserviência no discurso da mestiçagem na desqualificação.

O preconceito aos artistas brasileiros pesou por suas misturas. Outrora como princípio ao diminuto que retardou pinçar alguns alunos para bolsas de estudos em meados do século 19. Ironia do tempo, pois, o que mais valioso temos no século 21, são as nossas misturas.

Brasil, terra dos doces em fartura, frutas trazidas à terra fértil, do plantio extensivo da cana de açúcar a extração de pedras preciosas. Tudo tão doce e tão reluzente sob as marcas dolorosas da escravidão de indígenas, de africanos, de brasileiros com o estigma do último país a abolir a escravidão (1888), um século depois da Revolução Industrial e da Revolução Francesa.

chih, sem título, 2013

Chih Wei Chang, s/ título, 2013.

Série Retorno I: “Matuiú”

29 ago

por Gisèle Miranda

O CD Teatro do descobrimento (KIEFFER, 1999) remete a um memorial musical brasileiro sobre os séculos 16 e 17 com incorporações dos séculos 13, 14 e 15, através de viajantes, marujos de todas as linguas, crenças, aventureiros, fugitivos – dos relatos, cantos aos desenhos.

Através da faixa musical A Flauta de Matuiú, atribuída a Marten de Vos (1600), a estética germinou no Curupira de traços indígenas, de pele negra. Sua flauta é a representação e a transformação do território (colônia) na fusão de etnias e do marginalizado com pegadas para trás em busca da memória e da história.

aletheia silva, 2013

Aletheia Silva, a Flauta de Matuiú, 2013. Arte a partir da poética sonora.

As investidas à oralidade e seus encaminhamentos poéticos são também nossos Cordéis da região Nordeste do Brasil. O encontro da oralidade com a escrita recriou olhares e escutas da tradição popular e de acessibilidade à educação – dos Matuiús aos Curupiras.

A cultura material de povos sem a escrita ou de relação mista (oralidade e escrita) com enfoque nas diferenças sociais e educacionais, em tese, vem trazer olhares à produção dita artesanal ou de material étnico, mas:

…com a tensão que vai e volta entre a antropologia, etnologia e história da arte, a respeito de como expor o trabalho de povos para quem a criação artística significa um monte de outras coisas, além da própria criação. (OBRIST, 2010, 211)

O questionamento não vem de materiais perecíveis ou não perecíveis confeccionados à maneira de cada cultura, mas como apresentá-los sem a cultura de subjugação? Como valorizar os objetos diante daqueles que não querem ver, que não se sentem parte? Cores, traços, objetos, valores que incomodam a consciência?

Referências:

KIEFFER, Anna Maria (Org). Teatro do descobrimento (CD). São Paulo: Estúdio Cia. do Gato, 1999.

OBRIST, Hans Urich Obrist. Uma breve história da curadoria. Trad. Ana Resende. São Paulo: BEÏ Comunicação, 2010.

VIANA, Klévison. A botija encantada. Fortaleza: Tupynanquin Editora, 2001.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.