por Gisele Miranda
Os historiadores Georges Duby (1919-1996) e Jacques Le Goff (1924-2014) chegaram a aproximar as imagens do medievo da peste para a atualidade da Aids. Hilário Franco Jr. (1948-) nos trouxe o país imaginário de Cocanha associado aos desejos e aos confrontos. O amor cortês, dos trovadores aos amores impossíveis.
O cavalo como simbiose do cavaleiro; perseguições a judeus, ciganos e demais práticas religiosas que não fizessem parte do Cristianismo Ocidental; a unção vinculada à divindade hereditária para compor a harmonia entre poderes da Religião e do Estado. Os códigos masculino e feminino inseridos esteticamente, tais como a barba para dar maturidade, cabelos presos às casadas, entre outros.
A juventude que passou a ser bem vista somente com a prática dos cruzados pela fé, antes era temida pelos mitos da inconstância, vulnerabilidade, falta de maturidade. Os jovens foram retratados em pinturas e iluminuras à margem e em tamanhos menores. A cor associativa do jovem era verde – pela dificuldade que se tinha em dominar essa tonalidade.
O tamanho das figuras nas imagens como hierárquico. As mulheres só se destacavam como rainhas ou filhas, porém, menores que a masculina. As imagens marcaram estilos nas vestimentas, além de trazerem uma gama estética de comportamentos para a História da Arte.
Outrora, como discutir a imagem feita para contar, explicar, avisar, alertar sem o culto do belo? Sem a tônica da perspectiva? Sem a oficialidade do artista, pois eram artesãos ou religiosos com habilidades. As imagens tornaram-se linguagens de toda essa atmosfera.
No teatro foi uma válvula propulsora de todas as intenções do poder religioso e reverberações de castas postas em cena no riso e no deboche. Parecia comandado pelo discurso oficial, mas se transformava em comicidade própria e irreverente. Essa comicidade marcou o medievo da oralidade; despontou como atributo popular em meios as proibições da leitura e da escrita. Por mais encaminhamentos que fossem dados aos incitamentos populares e artísticos sempre pendiam ao riso do improviso, do incerto, do intempestivo ao convulsionado.
Mesmo assim, a imagética medieval foi ignorada pelo seu tom popular, sua imprecisão da forma aliada ao artesanato, sem nenhum refinamento dos considerados gênios do Renascimento ou dos valores clássicos.
O desdém às culturas orais foi contra atacado pelos medievalistas, principalmente nos anos de 1960. No Brasil as atividades tomaram fôlego nos anos de 1980, focando as diversas culturas indígenas.
A Oralidade eclodiu dos trovadores ao Cordel que encantou a arquiteta italiana Lina Bo Bardi (1914-1992) quando se deparou com o nosso artesanato e sua premissa artística no final dos anos 1950 e idos de 1960 no Brasil.
Ariano Suassuna (1927-2014) é uma das referências literárias desse devir “sertão medieval”. Ele capturou para a erudição, a riqueza dos saberes populares em cantorias, nas gravuras, no teatro, na desproporcionalidade do volume, do primitivismo anônimo e da forma improvisada.
Antes de Suassuna, Mário de Andrade (1893-1945), partícipe do grupo Modernista da década de 1920. Mário focou sua atuação na criação da Secretaria de Cultura de São Paulo, na década de 1930, com uma relação de parceria da Antropologia para valorizar os objetos de estudos históricos, culturais e artísticos.
Aos solavancos o culturalista Paschoal Carlos Magno (1906-1980), em um período político complicado às aglomerações de jovens nos anos de 1960/70/80, recriou as Barcas de Lorca em suas Barcas e Caravanas da Cultura.
Que medievo brasileiro é esse que tanto encantou Paul Zumthor e o fez aplaudir a “Cavalaria em Cordel”, a sua teatralização à poética oral?
Referências
BOLLÈME, Geneviève. O povo por escrito. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
BURKE, Peter. O Renascimento Italiano. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.
DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. Tradução Eugênio Michel da Silva & Maria Regina Lucena Borges-Osório. São Paulo: UNESP, 1998.
FERREIRA, Jerusa P. Cavalaria em Cordel: o passo das águas mortas. São Paulo: Hucitec, 1993.
FRANCO JR. COCANHA – a história de um país imaginário. Prefácio Jacques Le Goff. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LARIOUX, Bruno. A Idade Média à mesa.Lisboa: Francisco Lyon de Castro, 1989.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão; Irene Ferreira & Suzana Ferreira Borges. 2ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992. (Coleção Repertórios)
LE GOFF, J. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: UNESP, 1998.
LINA BO BARDI. (Coord. Marcelo Carvalho Ferraz). São Paulo: Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008.
MADEIRA, Gisele Ou MIRANDA, Gisele. Paschoal Carlos Magno (1906-1980): mosaico de um Culturalista (tese de doutorado/PUC-SP, 2000).
VASSALO, Ligia. O sertão medieval: origens europeias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.
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