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O último Poema

2 nov

por Gisele Miranda

Por causa do estupro cometido pelos torturadores, eu fiquei grávida e abortei na cadeia. Sofri choques elétricos, fui pendurada, posta no pau de arara, “submarinos” [ameaça de afogamento], simulação de fuzilamento, queimaduras com charutos (…) sofri estupro e assédio sexual com cães, a introdução de ratos vivos pela vagina e todo o corpo.

&

Obrigaram-me a ter relações sexuais com meu pai e irmão que estavam detidos. Também a ver e escutar as torturas de meu irmão e pai. Puseram-me na churrasqueira, fizeram cortes com facão na minha barriga. Eu tinha 25 anos.

(Relatos à Comissão da Verdade do Chile, 1990-1991/2004-2005: apuração dos crimes cometidos de 1973 a 1990. El País, Santiago, 11 set. 2019.)

Pouco antes do golpe militar no Chile, em 1973, o Museu de Arte Moderna foi pensado entre 1971-72, pelo então presidente Allende (1908-1973), a partir dos proponentes intelectuais e artísticos de vários países sob a liderança de Mario Pedrosa (1900-1981). No entanto, o Museu tomou um rumo diferente após o golpe militar, passando a ser um Museu de Resistência e Solidariedade. Gontran Netto (1933-2017) colaborou com a doação de “La Prière” (1), em 1973, concomitante, pintou “Chile 1973”

Gontran Guanaes Netto. “Chile 1973″. Óleo sobre tela 70 x 140 cm. Acervo da família/ Arquivo GGN/GM.

Com a morte de Allende, em 1973, o ditador Augusto Pinochet alinhou-se a um domínio sul-americano de muitas mortes. De 1973 a 1990, Pinochet manteve-se com um discurso neoliberal de privatizações e da educação controlada coadunada à visão do golpe; paralelamente, manteve estreitos laços com a Colonia Dignidad (fundada em 1961), comandada por um ex. suboficial nazista, Paul Schäfer. No local, praticavam-se estupros em crianças e mulheres. Os jovens presos políticos transferidos à Colonia tornavam-se cobaias para experimentos.

Os relatos de torturas são também calcados na experiência ditatorial do Brasil, desde 1964. Podemos incluir o Paraguai de 1954-1989, Bolívia de 1964-1982, o Peru de 1968-1980 e o Uruguai de 1973- 1985, três meses antes do Chile.

O artista Víctor Jara (1932-1973), professor de artes cênicas, poeta, músico tornou-se uma referência histórica e memorial sobre a violência durante a ditadura militar de Pinochet. Víctor foi um dos professores, junto com os alunos a ocupar a Universidade Técnica do Estado (UTE). Com um violão, ele cantou até ser detido e levado ao famoso campo de concentração do regime, o Estadio Chile, que em 2003, passou a se chamar Estadio Víctor Jara – marco de resistência contra o período da ditadura militar.

Testemunhas que estiveram com Víctor Jara no dia 16 de setembro de 1973, relataram à Comissão da Verdade que antes dele ser assassinado a tiros, os algozes  destruíram as suas mãos e lhe deram um violão para tocar.

Horas antes do ocorrido, Víctor conseguiu um papel e uma caneta com um amigo também detido no Estádio. Víctor Jara escreveu seu último poema.

Somos cinco mil

nesta pequena parte da cidade. Somos cinco mil.

Quantos seremos no total, nas cidades e em todo o país?

Somente aqui, dez mil mãos que semeiam e fazem andar as fábricas.

(…) Seis de nós se perderam

no espaço das estrelas.

Um morto, um espancado como jamais imaginei que se pudesse espancar um ser humano.

(…) Que espanto causa o rosto do fascismo! Colocam em prática seus planos com precisão arteira, sem que nada lhes importe.

O sangue, para eles, são medalhas. A matança é ato de heroísmo.

(…) O sangue do companheiro Presidente golpeia mais forte que bombas e metralhadoras. Assim golpeará nosso punho novamente.

Como me sai mal o canto

quando tenho que cantar o espanto! (…) O que vejo nunca vi,

o que tenho sentido e o que sinto fará brotar o momento (…)”

(Victor Jara, Estádio de Chile, 16 setembro de 1973). (2)

O último poema de Víctor Jara se transformou no Festival anual Víctor Jara, ou seja, cultura, educação, arte, história e memória do Chile Livre.

No mais, há de se debruçar sobre o tempo de apuração e os testemunhos. No Chile a Comissão da Verdade se deu no final da Ditadura Militar. No Brasil, a Comissão da Verdade se deu após vinte e sete anos após o término da ditadura.

Em 1991, um ano após a saída de Pinochet, a Comissão da Verdade do Chile apurou 3.065 mortes de jovens e 40 mil pessoas torturadas. Foram 17 anos de lavagens de dinheiro público e tráfico de cocaína no Exército. Pinochet manteve-se intocável até ser preso, aos 82 anos, em Londres enquanto tratava de problemas de saúde. Ele ficou em cárcere  domiciliar por crimes contra a humanidade. Em 2018, por decisão da justiça chilena, a família de Pinochet devolveu parte do dinheiro roubado dos cofres públicos do Chile.

(1) Sobre “La Prière” ou “A Oração” V. Série Retecituras V: Gontran Guanaes Netto e o seu manifesto pelo Chile https://tecituras.wordpress.com/2010/08/17/serie-retecituras-v-gontran-guanaes-netto-e-o-seu-manifesto-pelo-chile/

(2) “Somos cinco mil aquí. En esta pequeña parte de la ciudad. Somos cinco mil. ¿Cuántos somos en total
en las ciudades y en todo el país? Somos aquí diez mil manos
que siembran y hacen andar las fábricas. ¡Cuánta humanidad
con hambre, frío, pánico, dolor,
presión moral, terror y locura! Seis de los nuestros se perdieron
en el espacio de las estrellas. Un muerto, un golpeado como jamás creí
se podría golpear a un ser humano. Los otros cuatro quisieron quitarse todos los temores,
uno saltando al vacío,
otro golpeándose la cabeza contra el muro,
pero todos con la mirada fija de la muerte. ¡Qué espanto causa el rostro del fascismo! Llevan a cabo sus planes con precisión artera sin importarles nada.
La sangre para ellos son medallas.
La matanza es acto de heroísmo. ¿Es éste el mundo que creaste, Dios mío?
¿Para esto tus siete días de asombro y trabajo? En estas cuatro murallas sólo existe un número que no progresa.
Que lentamente querrá la muerte. Pero de pronto me golpea la consciencia
y veo esta marea sin latido
y veo el pulso de las máquinas
y los militares mostrando su rostro de matrona lleno de dulzura.¿Y Méjico, Cuba, y el mundo?
¡Qué griten esta ignominia! Somos diez mil manos que no producen.
¿Cuántos somos en toda la patria? La sangre del Compañero Presidente
golpea más fuerte que bombas y metrallas. Así golpeará nuestro puño nuevamente.
Canto, que mal me sales
cuando tengo que cantar espanto. Espanto como el que vivo, como el que muero, espanto. De verme entre tantos y tantos momentos del infinito
en que el silencio y el grito son las metas de este canto. Lo que nunca vi, lo que he sentido y lo que siento
hará brotar el momento.”

O TECER dos 13 anos do Blog TECITURAS (2010-2023)

30 out

por Gisele Miranda, Lia Mirror & Laila Lizmann

O Blog Tecituras nasceu nas paredes de um quarto – gestado e parido. As palavras foram esculpidas, ora na pena, ora com as unhas. O caos, a dor e a “solidão do porvir de poucos” atentou que a “consciência sobrevive a qualquer circunstância”. As incisivas palavras são do artista Gontran Guanaes Netto (1933-2017), amigo, professor e tutor.

Gontran Netto nos deu a honra de sua colaboração no Tecituras com suas obras e suas reflexões, seus escritos e interferências.

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A homenagem dos 13 anos do Tecituras vem de um conteúdo Histórico, Artístico, Crítico e Político. De conteúdo imaterial, inquietações do pensamento à escrita com o objetivo de compartilhar conhecimentos, experienciar e zelar pelos bens culturais, com colaboradores – com ou sem vínculos acadêmicos e com uma bagagem de textos não perecíveis ao tempo, atualizados, conscienciosos de sua necessidade, por isso, nossa justa homenagem a Gontran Guanaes Netto. Há inúmeros textos sobre sua arte, sua luta, além de tutelar um pequeno espaço tecido ao longo desses anos com pesquisas sobre as obras de Antonio Peticov, Emmanuel Nery, Paschoal Carlos Magno, entre outros temas.

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O conteúdo artístico faz uma grande diferença. O conteúdo crítico é uma filtro necessário frente a educação da exclusão. Dessa homenagem tecemos reverência ao ofício dos professores em situações de risco e pobreza.

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Nosso Brasil tão diverso, nascido de um histórico de pura violência, dos séculos de escravidão, da exclusão, dos preconceitos. Esses séculos não foram sanados, tão pouco, os 21 anos de violência da ditadura civil e militar no Brasil, porque não há consciência histórica.
As ditaduras devastaram toda a América Latina, torturaram, violentaram, reprimiram, subornaram, difamaram e mataram. Toda essa herança resiste cada vez mais, estratificada nos professores, na moral da violência e da submissão material, na baixa remuneração, na ausência dos livros, das leituras, do tempo, das escritas à “missão impossível”.
Entre a teoria, o discurso frio e confortável há o extremo da prática nada confortável. Entre as fases antagônicas existem mais falas sujas, oportunas e arrogantes. Sem dúvida, a figura opressora tem cúmplices entre os próprios oprimidos. (1)

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Entre os traumatizados há sobreviventes, independente da indexação, do conforto, da assepsia, da insensibilidade, do apodrecimento, dos muros onde os discursos, principalmente econômicos falam mais alto, não por acidente, mas por natureza.

(1)  BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo Vol 2: A Experiência Vivida, Difusão Européia do Livro, 1967. “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.

(2)  DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 221. 

A Fé de Clarice

21 jan

por Gisele Miranda & Lia Mirror

“Andar com fé eu vou

que que a fé não costuma faiá

A fé tá na maré (…)

A fé também tá pra morrer

Oh oh

Triste na solidão…”

Gilberto GIL (1942-), Andar com Fé, 1982.

Tristes mares dessa escrita que rasga e insurge das profundezas. Onde a Fé oscilou, Gilberto Gil cantou e fez Kofi Annan (1938-2018), tocar e dançar no encontro de culturas irmãs (brasileira e ganesa), numa ação que moveu os representantes humanitários do mundo, onde todos se levantaram para aplaudir, dançar e entender um pouco da História do Brasil e da África. Na época, Kofi Annan era secretário geral da ONU (de 1997 a 2006) e vencedor do Nobel da Paz em 2001; e Gilberto Gil, Ministro da Cultura do Brasil e embaixador da Onu para a agricultura e alimentaçõa  (de 2003 a 2008).

E pensar que Gil e muitos, de 1964 a1985, foram presos, muitos torturados, alguns sobreviveram com sequelas, outros morreram ou desapareceram.  Os vinte e um anos de Ditadura Militar no Brasil foram resgatados pela Comissão da Verdade, que nasceu em 2011. O grande passo nos aproximou dos nossos irmãos Argentinos através da luta e reconhecimento das Avós da Praça de Maio (desde 1977); dos Uruguaios, pelo reconhecimento da luta política de Pepe Mujica (1935 -). É uma lição, saber do duro isolamento e da resistência de Mujica, que nos remete também a prisão de Nelson Mandela (1918- 2013) – e uma história que também é nossa.

As Fakenews acionaram seus canais de esgotos e fizeram da nossa Comissão da Verdade “uma paz sem voz, que não é paz é medo”. (1) A violência endógena de nossa História do Brasil abriu as feridas de séculos. Um país em que os professores apanham do Estado, tornou-se um marco histórico de 29 de abril de 2015, em Curitiba. Depois disso, tivemos um presidente que cuspiu no tributo da família Rubens Paiva, insultou a mulher que todas nós somos, Maria do Rosário e Maria da Penha. A virulência personificada atiçou a misoginia desse país recalcado pelo ‘coronelismo’, visto e ouvido em rede nacional, em plenos jogos olímpicos, em 2016, em um coral que até hoje dói, reverbera e que abriga o alto índice de feminicídio.  Através de um coro misógino tiraram uma grande mulher presidente, violentada e difamada duas vezes na História do Brasil.

Quem mandou matar MARIELLE FRANCO (1979-2018)? Somado a isso, uma pandemia mundial frente ao negacionismo presidencial: – “E dai?”, pergunta o genocida do Brasil aliado ao estadunidense Trump – os dois negacionistas são responsáveis pelas duas primeiras colocações no ranking de mortos.

Os EUA se livraram do genocida deles. No Brasil, a República sobreviveu ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e a tentativa de golpe dos fanáticos que ignoram as feridas crônicas de nossa História e que querem mais sangue, mais mortes, mais armas, mais torturas.

Quem são os humanos que podem ser chamados de humanos? “Vidas negras importam”, lá nos EUA, aqui e em todo mundo humano. Tudo nos afeta, sem afeto, sem memória, sem história e “uma classe média” mais violenta do que nunca, que ora se esconde e ora mata – mata o filho da empregada, alimentado pelo colonialismo, pelo racismo, enfim, tudo calcado em um neofascismo.

Esse neofascismo (em sua terceira fase) tem a raiz conceitual no salazarismo, no franquismo, no ‘varguismo’ e no pós Segunda Guerra Mundial, deu origem ao neonazismo. Contudo sua temporalidade é outra, seus personagens e valores históricos são outros. Podemos pensar o conceito e ampliarmos à virtualidade fascista de 2020-2023 e os novos núcleos de combate. O neofascismo pertence as sociedades democráticas e capitalistas, algumas frágeis e em  processos democráticos.

Quais os movimentos atuais que são alvos e resistem? Por que resistem? – Resistem as mortes. A quem resistem?  – a quem MANDOU MATAR!

A política alt-right vem promovendo: “o racismo e a supremacia branca; a misoginia, o sexismo e condutas LGBTQfóbicas; o autoritarismo, a recuperação idealizada de uma ordem passada e discursos genocidas” (2). Essa política é a face do neofascismo. E quando tudo isso vem agregado às ‘rachadinhas’ ou do assalto histórico do Estado? As lutas foram divididas em grupos específicos, mas os neofascistas não dividiram suas bandeiras.

Estamos em guerra (fria). No meio do discurso da política de segurança nacional há superencarceramento. Na política antiterrorista há xenofobia. Já não respiramos porque a polícia mata, a milícia mata. O vírus mata e o político manda matar.

Quem deve morrer? Quem pode viver? As respostas tem muito do devir negro no mundo. No Brasil o devir negro é a resposta para quem morre, porque existe a política colonizadora. Como uma sociedade Democrática se comporta com tanta desumanidade histórica? -“o levante antirracista e antipolícia, nada mais é do que uma autodefesa em meio à necropolítica securitária…” (3) Vidas indígenas importam. Vidas negras importam.

Subnotificações são descartes da vida em regiões periféricas; os desempregados tem status de emprego informal para não contabilizar o altíssimo desemprego. As famílias estão morando nas ruas. Nas ruas e nos transportes públicos as pessoas clamam por comida. Pessoas oferecendo seus CVs e vendendo balas em coro: “por favor, me ajudem!” Nós choramos e escrevemos; as aulas tem sido nas ruas, nos trens, no repente necessário porque as vozes não podem calar.

Somado a tudo isso, a tragédia dos refugiados, 80 milhões de pessoas perseguidas por questões políticas, religiosas e étnicas. Entre as nações que mais geraram refugiados, está a Venezuela. A Turquia, outrora negacionista do massacre Armênio, tornou-se o país que mais acolhe refugiados. A Alemanha, outrora genocida nazista, “tem aberto o país para o acolhimento de refugiados e busca inserí-los na sociedade alemã.” (4)

O mundo está uma loucura. Nossas resistências tem sido um devir Clarice Lispector (Chechelnyk, Ucrânia, 1920- Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1977), pois estamos “atrás do que fica atrás do pensamento” (5)… tecendo a vida com a própria coragem e com A fé de Clarice: porque ela sabe quanto importa o outro, ela sabe pedir, ela sabe rezar. (6)

Gordon Matta-Clark (NY, EUA, 1943-Idem, 1978) Veículo de transportar Oxigênio, 1972.


(1) Rappa, Minha Alma (A paz que não quero), 1999. Alexandre Menezes, Lauro de Farias, Marcelo Lobato, Marcelo Falcão, Marcelo Nascimento Vi Santana. https://www.youtube.com/watch?v=dixEvTzhlaY&ab_channel=ORappa; Sobre a violência aos professores em 29 de abril de 2015 https://tecituras.wordpress.com/2015/06/24/da-31a-bienal-de-sao-paulo-como-coisas-que-nao-existem-a-29-de-abril-de-2015/

(2) Acácio Augusto. Cem anos depois, um novo fascismo. In: CULT, Ano 24, janeiro 2021, p. 9.

(3) Camila Jourdan. Quando vidas são descartáveis, nenhuma vida é um valor em si. In: CULT, Ano 24, janeiro 2021, p. 15.

[4] Alex Ricciard. “onde está meu irmão sem irmã, meu filho sem pai ? In: Revista Aventuras na História – A crise dos Refugiados, Dezembro de 2020, p. 36. 

(5) Evando Nascimento. O humano e o não humano, p. 27. In: Cult Clarice Lispector, ano 23, dezembro 2020, edição 264. Edição primorosa coordenada por Daysi Bregantini.

(6) Marcela Lordy. Por que amamos Clarice, p. 51. In: Cult Clarice Lispector, ano 23, dezembro 2020, edição 264.

Autobiografia de um ´artista´bem sucedido

3 jan

por Gontran Guanaes Netto

 

Gontran Guanaes Netto, s/ título, lápis sobre papel, 2003.

A proximidade dos meus 80 anos e na circunstância do meu retorno a França, sinto-me obrigado a remover a Casa da Memória para outro local. Foi necessário dar uma nova ordem a apresentação dos quadros. Eles marcaram tomadas de posições sobre acontecimentos diversos, tais como: o neocolonialismo 1970-1973, Chile, Vietnã, imperialismo, Palestina, racismo, etc.

Constato que nestes últimos 40 anos não houve necessidade de transgredir aos meus objetivos políticos e profissionais – constatando também a eficácia destas obras em seu papel comunicativo e que se desdobra ininterruptamente em estimulantes vertentes.

Ao reapresentar a Sala Escura da Tortura produzida em Paris, 1973,  pelo Grupo Denúncia do qual faço parte, tive que reviver os Direitos do Homem com a restauração das obras do Metrô de São Paulo: estação Marechal Deodoro.

Ao mesmo tempo me vejo retornando a França com entusiasmo redobrado e com a pretensão de continuar oferecendo novas perspectivas e enriquecer os mesmos objetivos.

Gontran Guanaes Netto, s/título, lápis sobre papel, s/d.

 

Série Retecituras V: Gontran Guanaes Netto e o seu manifesto pelo Chile.

17 ago

Por Gontran Guanaes Netto & Gisele Miranda

 

A Série Retecituras nasceu pelo revigoramento da escrita, em seu devir inacabado, também rememorado e retecido. Uma aula de história, arte e política.

O tema desse devir maturado é o Museu de Solidariedade Salvador Allende, nascido político com fases significativas de suas obras.

Antes do golpe militar no Chile, o Museu foi pensado entre 1971-72, por Salvador Allende (1908-1973) e contou com participação, entre outros, do crítico de arte Mario Pedrosa (1900-1981).

Durante a ditadura militar do Chile, de 1973 a 1990, as obras doadas tiveram o intuito de reafirmamento/reconhecimento da luta externa contra o ditador Augusto Pinochet (1915-2006) e por solidariedade ao Chile livre. Mesmo sob repressão, o Museu Salvador Allende resistiu.

Quando o Chile resgatou a sua democracia, o Museu foi revitalizado por intermédio da Fundação Salvador Allende e com a participação do artista e curador Emanoel Araújo (1940-2022).

Para selar a parceria Chile-Brasil, reconhecida desde o início do projeto do Museu, além de Mario PedrosaEmanoel Araújo, também estiveram presentes Gontran Guanaes Netto, Antonio Henrique Amaral (1935-2015), Lygia Clak (1920-1988), e inúmeros artistas de outras nacionalidades.

Emanoel Araújo assinou a mostra itinerante de cento e trinta obras selecionadas das duas mil obras do Museu Salvador Allende, denominada: Estéticas, sonhos e Utopias dos Artistas do Mundo pela Liberdade que ocorreu na Galeria de Arte do SESI de São Paulo, de março a junho de 2007.

Gontran Guanaes Netto, La Prière, 1973, acrilico s/ tela 97 x 130 cm.

Gontran Guanaes Netto (1933-2017) , La Prière, 1973, Óleo s/ tela, 97 x 130 cm.

Um ano antes da exposição recebemos um e-mail para avaliação da obra doada por Gontran Guanaes Netto, de 1973 (1). Contudo, a obra estava `sem título´, mas ela chama-se La Prière (A Oração). No mais, abaixo, o manifesto de Gontran Guanaes Netto:

Foi com surpresa que recebi o convite para a inauguração do Museu Solidariedade Salvador Allende. Julguei como certo que minha obra não estaria inclusa neste Novo Museu. A surpresa maior foi ver o meu quadro com a designação “obra sem título”, o que tirou o significado irônico da obra: Nixon (Estados Unidos) e Pompidou (França), presidentes de duas potências durante a guerra do Vietnã (1959-1975, Vietnã X EUA)

A obra chama-se La Prière (A Oração). Tema escolhido para ironizar a atitude de ambos diante da história. Ambos implicados na guerra do Vietnã. Preocupado, revirei papéis antigos e a dar voltas com a minha consciência.

Seria válido estar presente em uma exposição no coração do sistema e movido ao preço de um equívoco histórico, sendo eu testemunha, vivido com ardor e entusiasmo, participando e assinando documentos que contrariam a atual apresentação do Museu?

O golpe do Chile consternou a Europa e, especialmente, a França que naquela época se preocupava com as perspectivas democráticas via eleições. As tendências de denúncia e resistência eram intensas.

Participei da exposição Viva Chile, na galeria Dragão, em Paris; com a venda dos quadros doados angariou-se fundos para retirar pessoas em situação de risco do Chile. Nós, os responsáveis pela iniciativa: Julio Cortázar, Le Parc, Cecília Ayala e eu, além da colaboração de Roberto Matta. No momento do golpe estávamos em Havana e assinamos o Manifesto Setembro 73, contra o golpe de Augusto Pinochet.

Fundamos a Brigada Internacional de Pintores Antifascistas quando recebemos o convite da Bienal de Veneza e apoiamos a greve de doqueiros venezianos que recusaram-se a carregar armamentos para o Chile de Pinochet. 

A Brigada era composta por quinze artistas de diversos países. Além de considerar-me partícipe com outros artistas na criação do Museu contra Apartheid, Museu da Palestina e Museu da Nicarágua. Isso não foi ou é utopia. Agora é história e memória.

Parte da obra coletiva Grupo Denúncia: Sala Escura da Tortura. Gontran Guanaes Netto (1933-2017), Jose Gamarra (1943-) Julio Le Parc (1928-) e Alejandro Marcos (1937-). A partir de relatos de Frei Tito de Alencar e outros torturados.  Obra de 1973. Óleo sobre tela, 2m x 2m.

Só me resta dizer:

Arafat não pertencia a sua família, senão ao povo palestino.

Salvador Allende pertence ao seu povo e sua morte representou um inequívoco ato de Resistência.

Eu vejo os Museus atuais desodorizados, esterilizados e protegidos de manifestações.

Meu único patrimônio ainda é a minha consciência: Ancien combatant, jamais.”

Referências:

GUANAES NETTO, Gontran. Manifesto. Manuscrito,  Itapecerica da Serra, outubro de 2007.

MOLINA, Camila. Preciosidades que chegam do Chile: Mostra reúne parte do Museu Salvador Allende, formado por doações de artistas do mundo todo. Jornal O Estado de S. Paulo, 19 de março de 2007, Caderno 2, D-3

Filme: 11 de Setembro (11’09”01), 2002 (França). Direção: Youssef Chahine (segmento Egito) , Amos Gitai (segmento Israel) , Alejandro González-Iñárritu (segmento México) , Shohei Imamura (segmento Japão) , Claude Lelouch (segmento França) , Ken Loach (segmento Reino Unido) , Samira Makhmalbaf (segmento Irã) , Mira Nair (segmento Índia), Idrissa Ouedraogo (segmento Burkina-Faso) , Sean Penn (segmento Estados Unidos) , Danis Tanovic (segmento Bósnia-Herzegovina). Onze diretores e onze curtas sobre 11 de Setembro; o inglês Ken Loach assinou o curta sobre o 11 de setembro de 1973 do Chile.

Exposição: “Sala Escura da Tortura”. Coletivo sobre as torturas na América Latina. Museu do Ceará, Fortaleza, 2005. Curadoria Edna Prometheu. Exposta a primeira vez no Museu de Arte Moderna de Paris, em 1973, seguindo para exposições na Itália, Suíça, Alemanha e Brasil.

Sobre obras brasileiras do Museu de Solidariedade Salvador Allende: Imprensa Oficial publica livro com obras brasileiras doadas para o Museu da Solidariedade Salvador Allende


[1] Paula Maturana, Coordinadora MSA – Museo de La Solidariedad Salvador Allende, em 26 de abril de 2006  – “Avaluo obra de Gontran Netto perteneciente al Museo de la Solidariedad Salvador Allende”